A isto se chama destino: estar em face do mundo, eternamente em face (Rilke)

sábado, 4 de outubro de 2014

MURILO MENDES, UM POETA TRANSGRESSOR

         
          Recentemente visitei, em Juiz de Fora (MG), o Museu de Arte Murilo Mendes, que abriga obras do poeta mineiro, em diferentes edições, objetos pessoais, estudos críticos sobre o autor e a coleção de arte valiosa que a ele pertenceu . O prédio, onde funcionava a Reitoria da Universidade Federal de Juiz de Fora, instituição onde cursei Jornalismo, já algum tempo está sendo utilizado,  para guardar e divulgar o  legado do escritor. Um espaço digno da grandiosidade da obra de Murilo Mendes,  considerado um dos maiores poetas brasileiros. Da outra vez que fui ao Museu, ele ficava num a casa histórica, mas acanhada e sem condições para continuar abrigando o acervo.
        No ano em que se comemora 20 anos de criação do museu,  uma série de eventos está sendo realizada para homenagear o escritor mineiro. Confesso que conheci a poesia de Murilo tardiamente. Se Drummond foi meu poeta da juventude, o poeta de Juiz de Fora foi o da maturidade, com um dicção mais cosmopolita e visionária. Portanto, não pestanejei quando tive a oportunidade de escrever um artigo sobre meu poeta conterrâneo, um dos meus favoritos, num das disciplinas do mestrado em Estudos Literárias na UFPR. Uma cópia eu deixei no Museu, numa pasta onde há outros textos não publicados sobre o autor. Mas ele pode ser visto na internet. É só acessar link abaixo:
http://pt.slideshare.net/nicolato77/murilo-mendes-25362064
(Foto: acervo MAMM)

sábado, 20 de setembro de 2014


INSIGHTS

I
Assim meu coração deu
Asas à razão.
Só para confundir…
Só para amolar.
Amores. Vagas estações
No brilho dos olhos
De ressaca de Capitu.

      II
Paisagem interiorana:
Homens na calçada.
Mulheres dançam
Ao redor do fogo...
É noite!
Estrelas caem do céu
Clara noite no sertão.
Guimarães trouxe a viola,
Zé Beto, os causos,
Diadorim amor pra mim.
Riobaldo, meu brother,
Companheiro de quarto.
   
      III
Quem, com teus olhos,
desenhou o vôo do pássaro,
o passo lento, a despedida?

      IV
Hoje toquei teu ser
ávido de ternura.
Serra de límpido azul.
Porque do coração é esta
A mais  pura natureza:
Seus olhos ingênuos,
Flor do pântano
De múltiplas incertezas.
E que guardo,
Como o anjo bom,
da serpente da dúvida.
     
      V
A verdade nos sonhos
é o que procuro.
Em ritmos velozes,
coração que se atrapalha.
Beleza que se fez
ninho para o pássaro
da mais pura alegria.

domingo, 31 de agosto de 2014

IBITIPOCA




Esta paisagem singular
Deixou um rastro de vida
Flor que é saudade,
Cristais nos olhos,
Veredas que a tudo anima.

Ali, ao batismo da
                         água pura.
Na irmandade dos peixes
O corpo sereno na correnteza.
                           seguiu
A alma insaciável na
                        paz dos dias.

Nesta natureza que é templo.
Onde Narciso dá de comer
                        aos lobos.
Onde a flor dos manacás
                        se oferece.
Ali verti os ares como o
                   grande pássaro
A tudo que nascia.
Bromélias na árvore seca.
Amores imperfeitos em
                 trilhas infindas.
Eu que  aos mares viajei.
Que nas cidades vivi o
                 inferno dos dias.
Branca lua saudou-me,
E o rio como um vulto,
                 que insinua.

Na cachoeira, como turbilhão,
Lágrimas verteram,
Banharam as aves
Inclinadas ao vento.
A saudade abriu-se em flor.
O mundo em mistérios.
E, assim, atravessamos a
Branca estrada de quartzos.
Milhões de pequenas pedras.
Retangulares, redondas...
Em teus olhos refletiam
Só a lua, agora,
Em nossa companhia.
(Poema e foto de Roberto Nicolato)

DESPEDIDA



Desvio agora o olhar, e vejo que uma pequena legião desce os degraus das escadarias da velha igreja, guiada por um vulto de veste negra, acima dos demais na altura; de sorte que me certifico logo se tratar do pároco da aldeia, de feições um tanto sérias e princípios não menos conservadores. Lá de cima, o badalar do sino ganha uma nova melodia e um ritmo mais lento. A missa já havia acabado, e teria de encontrar uma desculpa aos meus pais para justificar a minha ausência. Mas naquele dia tudo era permitido, pois que era um dia de despedidas.
           Desço a montanha em disparada, voando para o abismo, as pernas destrambelhadas até parar lá embaixo, com o coração cuspido pela boca. Se era para enfrentar o pior, do que temer? Como disse, tinha por ocasião 12 anos de idade e estava para entrar na adolescência que, por sorte ou azar, seria vivida em grande parte no seminário, recluso junto com outros garotos, numa grande construção cercada por uma extensa mata. Devia dar graças a Deus pela possibilidade de estudar na companhia de filhos de famílias dotadas de um bom poder aquisitivo. Eles eram mandados para lá para ajudar na sua formação e eu para salvar a mim e a minha família de maiores desgraças.
(Do livro "A Caminhada ou O homem sem passado")

quinta-feira, 28 de agosto de 2014



DISTÂNCIA

Há um canto do quarto
para onde convergem
angústias e pegadas
do que não fomos.

Um fio de lã das
cobertas vermelhas;
resto de batom
no chão negro.

É como se nesse
espaço habitassem
todos os beijos e
carícias não dados:
Gemidos de uma
noite perdida.

Esquecido neste
canto esconde-se
velha garrafa,
licor ardente,
de bruxa,
quente como língua
-- agora e sempre
       longe dos olhos.

(Poema de autoria 
de Roberto Nicolato)

sábado, 9 de agosto de 2014

UM CONTO


                  Suzy

    Roberto Nicolato

Suzy deixou a caixa de papelão num canto do passeio, caminhou lentamente, esperou, um carro zuniu em disparada, olhou para os dois lados da rua e, cambaleante das pernas, tentou a travessia. Parte dos pelos havia caído, as manchas escuras abriam-se em feridas, as orelhinhas murchas. Estava acostumada a transpor a rua larga e movimentada. Mas agora era diferente. O outro lado parecia mais distante, quase indefinido. Sentia o respirar ofegante e a vista tomada pela catarata.
 Velha já ficara e cheia de doenças. Ninguém a olhar por ela, sempre tendo que vencer sozinha na vida. Mais um carro passou como um raio, outros vieram em seguida, ainda bem que Suzy ouvia direito e, assim, pôde esperar o momento certo para atravessar. Vislumbrava do outro lado algo apetitoso, colorido e com cheiro bom. Tinha que atravessar para pegar a comida, antes que outro cão a farejasse.
Com esforço, Suzy levantou uma das orelhas murchas, o rabo alongou-se e foi decidida, confiante; esboçou um zigue-zague atrapalhado, um automóvel freou em cima, deu um gemido, apenas um susto, e, com esforço e sorte, conseguiu atingir o outro lado da rua; em pouco tempo carregava, tentando esconder entre os dentes, o merecido  objeto de desejo.
O velho a observava da janela de seu apartamento. Vivia solitário. Julgou-se igual a ela. Acompanhava o drama de Suzy e sabia que ela não se contentava em permanecer em apenas uma das margens. Ainda mais que o mundo era vasto, vastíssimo, sem paredes.
Testemunhou as fases da vida de Suzy, desde que ela nascera; um filhote muito vivo, a saltitar pela grama,. Os dentes fininhos mordiam em tudo. Ninguém quis adotá-la. Assim foi criada na rua. Com as sobras. Só água à vontade. Além de um abrigo improvisado, feito com caixa de papelão, e o velho cobertor na calçada para se defender do frio. Suzy, no fundo, sabia se virar, pois que a ela foi dada a inteligência dos vira-latas.
 O velho agora a observá-la debaixo da marquise, deitada, lambendo as feridas. O tempo havia passado rápido demais. A cadela chegara aos quinze, ele de tudo lembrara, ainda mais agora, quando os dias se resumiam aos cômodos do apartamento, com o pijama de sempre, sem uma companheira que fosse para cobrir-lhe as pernas no frio, dar os remédios na hora certa, fazer o café.
Tinha casado sim. Tivera por muito tempo uma vida normal. Diria feliz. Até que a esposa caiu doente e foi primeiro. Não esperava. Os filhos já haviam saído de casa, cada um morando numa cidade diferente e ele preferiu ficar ali, se dizendo forte, dono do seu próprio nariz porque não queria viver na dependência de ninguém. Enfim, as visitas eram bem vindas no período das férias.
Vivia o tempo todo trancado dentro de casa e ainda bem que podia pagar a empregada. De tal maneira que lhe sobrava muito tempo para se assuntar do nada, para observar o movimento da rua, as mudanças de estação e o ser vivente que com ele comungava. Suzi atravessando o asfalto a desviar dos carros, de sem-vergonhice com os cachorros do bairro, pedindo comida aos transeuntes, acompanhando um rapaz até o ponto de ônibus, atrás dos passarinhos.
Notou, no entanto, que ultimamente Suzy andava sem rumo, o rabo entre as pernas, fazendo um esforço danado para não permanecer no mesmo lugar. Do mesmo modo, ele também sem ter para onde ir, confinado com um boi a espera do desfecho final, sentindo frio nos ossos, as pernas doídas pelo reumatismo.
Melhor se a cadela morresse logo, do que viver naquela agonia, condoeu-se o velho ao avistar Suzy, do outro lado da rua, agora tremendo de frio, encolhendo-se toda no seu mundo de dor. Sentiu piedade. Lembrou de tomar os remédios. Escolheu uma das caixinha, dentro de uma caixa maior. E enfiou na boca três comprimidos. Tudo rápido demais, sem qualquer pensar.
A tarde caiu, o nevoeiro tomou conta de tudo. O velho voltou à janela, de frente pra rua. Suzy apareceu, como uma mancha escura, não se via mais a caixa de papelão e, aos poucos, foi-lhe sumindo da vista. Na rua, tomada pela cerração, reinava a luz dos faróis, impressionistas, dos postes de iluminação pública.  Pensou: ela deve estar no mesmo lugar, desvalida, pedindo socorro. Não esboçou qualquer reação, pois que era tarde para enfrentar o frio cortante lá fora.  No fundo, achou que fosse melhor assim.  A empregada já tinha se despedido  e não tardou pra que ele pegasse no sono.
Num só instante, Suzy corria desvairada pelo apartamento; dona de tudo subia nos móveis da sala, lambia-lhe os braços, afoita.  Com o fôlego de atleta, as mãos ágeis, ele afagou a cabeça, as orelhinhas marrons. Olhou pela janela, uma estrela desceu em disparada. Duas pequenas esferas brilharam. E sonhou com caçadas na mata, brincadeiras na praia, Suzy agora feliz, o pelo sedoso contra o vento.



quinta-feira, 26 de junho de 2014

METAMORFOSE



A metamorfose é um processo
De mudança do ser para o não ser,
Do ontem para o amanhã,
Do nada para o agora
Travestido de novo.

A metamorfose ocorre
Durante a passagem
Dos raios luminosos,
De um vago pensamento,
De lapsos, vôos incertos.

O corpo se transforma.
Os músculos, novos, exaltam
E a conformação corpórea
Rompe o mundo antigo
Crisálida que se aflora,
Prateada de cor
A quem se olha...
Não é propriamente
Um descaminho
Essa procura que não se acha
Esse novo de eterna maravilha
Esse ganho de perdas.

A metamorfose é uma
Meta(mor), fóssil cheio
De cores, feições e jeitos
Uma nova forma prevista,
Que surpreende por ser nova,
Única e indiferenciada.

A metamorfose da
Borboleta-coruja,
Lepitoptera, foi
Observada
Pelos botânicos em
Todo o país ou quase.
O camaleão que refestela
Ao sol dos trópicos ou
A visão do acaso numa noite
De lua  é pura metamorfose.

Ela está suspensa no vento,
No galho de manacá roxo
Na folha da roseira.
Não há sol no azul que a
Surpreenda, essa forma de vida
Que se entrega ao mundo
Para seguir o que se determina,
E que ela em formas  refaz.

(Poema e foto de Roberto Nicolato)

O JARDIM JAPONÊS



Pedras disformes se chocam.
Seixos. De musgos, se alimentam.

Brincam entre cubos, pirâmides,
os círculos de fogo...

Árvores, gêmeas, germinam
entre boninas e lírios brancos.

A água goteja em planos descendentes!

Longe se ouve a aranha tramando...
O espinafrar de asas, incertas.

Frágil é o jardim para o desavisado pássaro.
Ele invade territórios, o ninho das orquídeas.

Cerejeiras estão em flor!
É primavera no coração de Bashô!

O sapo salta fora d’água
Torvelinhos se formam...
O rio se enche de “barrigudinhos”.

A água escorre, o rio-tanque, estanque
O pequeno Buda brinca de esconde-esconde.
aos olhos de quem o oriente:

No jardim de formas sinuosas
De desenhos geométricos,
tímidas bromélias 
brincam entre bonsais.

Nele a natureza faz festa:
Bate o tambor:
acorda a floresta,
ao som do taikô!

(Poema de Roberto Nicolato - Obra "Jardim Japonês", de Claude Monet)

domingo, 22 de junho de 2014

FALANDO EM FUTEBOL, COPA E INGENUIDADES II



-- Você conhece as catacumbas? – perguntou Joãozinho ao amigo, com o qual dividia o quarto no seminário.
-- Não. Não tenho coragem – respondeu Alfredinho com franqueza, para que não restassem dúvidas de que ele jamais pretendia colocar os pés naquele lugar.
Desde que chegara ao seminário, havia dois anos, não tinha sequer ousado chegar perto da entrada e muito menos descer a escada que dava acesso ao úmido e escuro porão (assim imaginava), onde os mortos estariam repousando na paz de Deus. Achava muito estranho eles estarem ali muito próximos dos vivos.
  Não foram poucas as vezes em que acordou de noite em pesadelo, cumprindo uma caminhada por aqueles caminhos tortuosos. As urnas trancadas e o que se encontrava lá dentro? Assim, mantinha o quanto podia o mais afastado das catacumbas, de maneira que a pergunta feita por Joãozinho o pegou de calças na mão. Ele sabia que o amigo a fazia só pra provocar, pra mostrar coragem e se revelar capaz de descer aquelas escadas, se é que já não tivesse visitado algum dia os mortos.
Sabia que lá encontravam-se os corpos dos irmãos fundadores da ordem, e que no seminário a cada qual destacavam-se uma maneira de ser, prevalecendo as suas melhores atribuições, pois que ali o trabalho de dedicação era indispensável.   Ele conhecia todos pelas fotografias no livro de recordações. Tentava pela formato e expressão de cada um, dar-lhe o caráter necessário, o sentimento devido para com os alunos da instituição. E ali estavam eles, em preto e branco, nos dias de festas e homenagens, nas formaturas e despedidas, com uma postura solene, na maior das vezes.
Joãozinho, no entanto, insistiu.
-- Pensava que não tinha medo de nada…
--  Prefiro não conversar sobre o assunto – escamoteou Alfredinho, para que o amigo o deixasse em paz.
Na manhã seguinte, os meninos acordaram bem cedo como de praxe. No entanto, era domingo no seminário. Depois das orações, teriam o dia inteiro livre para fazer o que quisessem.  A maioria gostava de jogar futebol pela manhã ou ensaiar alguns movimentos de luta.  Não teriam os padres pra os espionar, de modo que a liberdade era algo que os deixava em completo estado de euforia.
  O campinho ficava próximo ao Cruzeiro, de onde se avistava o imenso rosto esculpido em pedra da montanha. Carregado de mistério, a cara enorme formada há milhões de anos, olhava para o céu. Para Alfredinho, representava algo indecifrável da mesma forma que os dogmas religiosos que entre os padres pareciam tão naturais. Se durante o dia, a caraça reinava absoluta como se estivesse dormindo num leito eterno, à noite o que assustava o adolescente eram os gemidos dos lobos na imensa floresta. Podia ouvi-los defronte à janela do quarto.
Nos jogos como nas brigas, Joãozinho sempre tinha ascendência sobre os demais meninos do seminário. O adolescente era magro, alto, moreno e de uma inteligência superior aos demais. Alfredinho o admirava, ao mesmo tempo em que  o achava esnobe, cônscio demais de sua superioridade.  O campinho, naquela manhã estava lotado, os times foram divididos, de modo que ele acabou permanecendo entre os onze jogadores,  cuja equipe adversária tinha Joãozinho na liderança.
Joãozinho continuou decidido na sua ideia de levar o amigo a conhecer as catacumbas. Houve uma aposta e o combinado foi que o time perdedor teria de encararar uma visita aos subterrâneos do Seminário, onde dormiam eternamente, como já dito, os membros da congregação. Alfredinho, desta vez, não teve outra alternativa a não ser aceitar a aposta, pois que o pior de tudo era a covardia. E temia ser vítima de chacotas Assombrava-se, no entanto, ao pensar em percorrer os labirintos estreitos e escuros que levavam aos mortos.
Ssria um jogo de vida e morte, pois ninguém queria correr o risco de enfrentar tal situação.  Se o time adversário contava com Joãozinho, como esperança de gols, a equipe de Alfredinho depositava em Josué a sua maior força.  Embora não muito inteligente nas aulas, o adolescente tinha vocação para jogar futebol. Era ágil, forte e sabia usar as oportunidades para marcar os gols.
O primeiro tempo terminou em 1 a 0 para o time adversário.  No segundo, o empate com um gol de Josué, mas foi por pouco tempo, pois a destreza de Joãozinho conseguiu superar a marca adversária. Perdiam por 2 x 1 e restavam poucos minutos para terminar a partida. No semblante dos colegas, estava estampada uma mistura de desânimo e assombro.
Que ele se lembrava nunca tinha sido um bom jogador de futebol. E por isso, Alfredinho sempre atuou na defesa, pois que não se sentia capaz de inventar jogadas e, assim, se safava da cobrança de ter que marcar algum gol. Mas naqueles minutos finais, precisava fazer algo, por ele mesmo. Foi então que correu para a pequena área do time adversário e num passe de mágica não é que a bola veio diretamente aos seus pés! Foi só finalizar um chute certeiro e evitar uma derrota vergonhosa. O time estava salvo e ele, com sua equipe, não teria mais que pagar a aposta. Pela primeira vez, se sentiu-se um vencedor. Foi cercado, abraçado  pelos colegas.
Joãozinho ainda tentou conversar. Dizer que o juiz tinha roubado… Alfredinho olhou para o amigo, notou a  revolta, e o melhor de tudo era que não precisaria enfrentar mais aquela situação absurda, pois que os fantasmas haviam sido  derrotados. Dali em diante, refugiariam-se para sempre nos túmulos de sua memória.
E foi assim que Alfredinho não precisou mais provar ao amigo qualquer espécie de coragem para visitar as catacumbas, no porão do seminário. No outro dia, os meninos mais  aliviados com a decisão dos irmãos superiores: O portão que levava aos corredores escuros, localizados nos subterrâneos debaixo dos quartos onde dormiam, estaria para sempre trancado à visitação pública.
(Trecho do livro "A caminhada ou O homem sem passado, de Roberto Nicolato - Obra "Futebol", de Cândido Portinari)

terça-feira, 27 de maio de 2014

FALANDO EM FUTEBOL, COPA E INGENUIDADES

                                Obra "Futebol", de Cândido Portinari

                                            
                                                       Guerra de Torcidas


Próximo ao rio ficava o campo de futebol. Naquele domingo pela manhã, o time da casa iria receber um visitante de peso. A pequena torcida era composta principalmente por moças e crianças. Ele, um moleque franzino, de calças curtas, se juntou ao bando e se foram a desfilar pela grama, lateral ao campo, de uniformes e bandeiras, acompanhados por uma pequena charanga, a tocar e a sinalizar nas letras de músicas conhecidas os mais desaforos em relação à torcida rival.
No meio da pequena multidão, um rosto se destacava. Era Marcela, já na adolescência, com seu rosto provocativo, marcado por sardas e os olhos verdes que mais lembrava Babi, uma gatinha arisca que vivia no povoado.
Marcela empunhava a bandeira verde e branca do Independente Futebol Clube, o suor escorria pela blusa amarrada na cintura por um nó, e os seios durinhos a lhe provocar, assim como as pernas torneadas que se moviam com vigor por debaixo da minissaia.
-- Vamo pra cima deles! Dizia com ferocidade, apanhando em todo o espaço em que havia muchibas de laranja para assustar a torcida adversária. Precisavam saber que eram do mato e eles da cidade e, por isso eram, por sorte do destino, mais animais e, portanto, mais fortes.
A guerra de muchibas e de palavrões foi declarada. O que lhe movia era algo instintivo e não quis saber naquele momento em quem estava do lado de lá, a não ser o inimigo. Como nos soldadinhos de chumbo.  No campo, o jogo também esquentava. José Adauto jogava muito pelas pontas, Danilo tinha um chute forte e certeiro e Antônio Carlos era o melhor do time, pois que driblava com astúcia e sabedoria.
Tinham até uma trilha sonora para embalar a torcida. Coisa pra irritar, mesmo. Quando do primeiro gol do time da casa, a euforia tomou conta de todos, assim como as provocações, o que irritou ainda mais a torcida adversária.  E não sem hora, a confusão engrossou, com palavrões, e foi quando Marcela, que avançava na frente como uma guerreira,  recebeu na cabeça uma pedrada.
A menina não percebeu de imediato, até que o sangue verteu quente pelo rosto, entre os cabelos e a boca. Sentiu-se fora da luta e foi então que todos começaram a dar conta de que se tratava mais do que uma inocente briga de torcidas.
Marcela foi resgatada do chão por vários braços, carregada num ritmo veloz, que foi abrindo caminho na multidão até ser instalada dentro de um jeep. Ele olhou seu rosto  ensanguentado e não se esqueceu jamais daqueles olhos verdes e febris. Dali,  ela foi levada ao hospital da cidade mais próxima.
Voltou para casa no mesmo dia, ainda mais bonita, com o curativo na cabeça, sinal de luta e heroísmo. Estava feliz e isso ele pôde ver nos seus verdes olhos. O Independente sofreu muito, lhe disseram, mas venceu com garra e talento um time de peso da segunda divisão.
(Extraído do livro "A caminhada ou O homem sem passado", de Roberto Nicolato)