A isto se chama destino: estar em face do mundo, eternamente em face (Rilke)

sexta-feira, 7 de junho de 2019

COPACABANA ME ENGANA



"E depois: “Que fim levou a Marcinha”, perguntou sem que os filhos ouvissem e a lembrança os levou ao Cine Drive In, nos anos 70, no Rio de Janeiro. “Lembra, passava Copacabana me Engana. Eu você, Elena e Marcinha, que era louquinha de tudo. Na volta, ela vinha imitando a Odete Lara, cantando "Baby" e “Try a little tenderness”, no fusquinha azul. Fiquei com a Marcinha naquela noite...”, disse Elias convencido e ciente de que agora era um homem de família, filiado 
a um partido e artista cooptado pelo Estado". 

Do romance "Havana me engana"

domingo, 2 de junho de 2019

DO OUTRO LADO DO CARIBE (André IV)


"Não havia mais o que perguntar. André deixou o local. Ela não o havia esperado o bastante, talvez nem o amasse tanto. Realmente, a vida naquela época não estava nada fácil para os cubanos.
Teria sido melhor assim, pois isentava-se do atroz sentimento de culpa. Chegou até o Malecon, observou o mar tranquilo, a vida que seguia sem pressa. Caminhou pela passarela, Havana era apenas uma cidade sem cor. Não havia mais o que buscar. Ela era outra, agora vivendo do outro lado do oceano. Se pelo menos,  estiver feliz..."

Do romance "Havana me engana"
Fotos: Roberto Nicolato

terça-feira, 30 de abril de 2019

LEON NA SANTERIA (Leon IV)




"Seu corpo ganhava velocidade no compasso das palmas, dos atabaques e giravava feito um pião. Ele via Elena lhe acenando nua, ao longe. Os cabelos negros, os grandes olhos pedindo que ele fosse ao encontro dela. “Aqui é diferente, o mundo é suportável”, ela dizia e ele não conseguindo ultrapassar o fio de silêncio, o fosso invisível que os separava. Ela apoiava o corpo desnudo no cavalinho de um carroussel, ia e voltava, chegava perto e ele tentava em vão alcançá-la. Mas via a imagem de Anna, sorrindo irônica. “Não há resposta alguma, em nada”.

Do livro "Havana me engana?"
Fotos: Roberto Nicolato

quarta-feira, 17 de abril de 2019

ENCONTRO MARCADO (León IV)






"Leon dirigiu-se à varanda do Hotel Comodoro. O sol declinava no mar do Caribe, lá embaixo um cocotáxi dividia espaço com uma carruagem levando turistas. O Malecon formigava no fim de tarde. Da sacada, ele podia avistar o Hotel Nacional, o Meliá e até mesmo a embaixada dos Estados Unidos,  tendo à frente as bandeirinhas negras tremulando. Observou os terraços dos prédios carcomidos na área central, pontuados por alguma parede esverdeada ou roupas estendidas nos varais. Um homem moveu-se rapidamente por um corredor e Leon se deu conta de que havia marcado de encontrar Anna e Giuliano. Antes, ia pegar  Elias e André no Centro das Artes".

Do romance Havana me Engana
Fotos: Roberto Nicolato

HEMINGWAY, COLECIONADOR DE HISTÓRIAS (Giuliano IV)









"Giuliano se desvencilhou e lhe beijou suavemente a testa.  
-- Temos que ir – apressou. 
Dentro do táxi, Giuliano ainda vislumbrou o Pilar atracado num Galpão perto da piscina de Hemingway. Estava bem conservado e não era mais que uma relíquia de um colecionador de histórias e vidas. Dentro, o velho capitão dava repetidas baforadas no charuto. Percebeu Giuliano e, do convés, acenou, enquanto o Bel Air 1947 contornava as alamedas, deixando silenciosamente para traz a Finca Vigía". 

Do romance Havana me Engana
Fotos: Roberto Nicolato

sexta-feira, 22 de março de 2019

A ESSêNCIA DO TRÁGICO (Giuliano IV)




 (
"Giuliano puxou uma das cadeiras, sentou, encostou o rosto na mesa e sonhou o mesmo sonho, recorrente, daqueles que um dia desertaram de sua terra, os chamados homens condenados ao desterro, e Hemingway era um deles,  queria sim classificá-lo, ele que era um homem de poucas lidas, recolhido à sua mansarda, o designava como um macho sedutor, um homem de duas faces, num tempo em que só eram concebidas a perfeição e o desregramento; ele era a própria essência do trágico, Apolo e Dionísio. No fundo, um herói de si mesmo, um homem qualquer. Ou como gostaria Anna..."

Do livro "Havana me engana"
Fotos: Roberto Nicolato

quarta-feira, 20 de março de 2019

NA RESIDÊNCIA DE HEMINGWAY (Giuliano IV)








"Anna desceu do Chevy Bel Air e naquela tarde trajava um vestido florido, tinha belas pernas, notou Giuliano, e ela lhe sorriu, tomando-lhe os braços para que pudessem entrar juntos na casa do escritor. As entradas, no entanto, encontravam-se bloqueadas. A regra era observar tudo das amplas janelas do agora museu, administrado pelo governo cubano. Anna enfiou a cabeça para dentro da casa. “Aquele foi o maior que ele matou”, indicou a funcionária, orgulhosa. A garota perseguiu com os olhos nas paredes brancas os troféus de caça: um grande cabeça de bisão empalhada, e depois  os cervos, animais do Quênia.  

-- Que horror! – disparou."

Do romance "Havana me engana"
Fotos: Roberto Nicolato

quinta-feira, 14 de março de 2019

NA FLORIDITA (Giuliano IV)

"A moça roçou carinhosamente o rosto na estátua de Hemingway, ele sentado no balcão na pose de bebedor inveterado, e ela em pé num abraço, pedindo para que a fotografassem. Um daiquiri, por favor, diziam os turistas que iam tomando conta do grande balcão, ávidos por provarem o drinque celebrado pelo escritor.  Uma pequena orquestra animava o ambiente e os garçons moviam-se frenéticos naquele ritual de todos os dias. Estavam ali reunidos grupos de turistas que não se conheciam, mas que pareciam muito próximos como se participassem de uma confraria, embora sem contágio e profunda interação. 
Ah! A Floridita é aqui. Giuliano entrou de mansinho, vergonhoso, pois que estava só."

Do romance Havana me engana
Foto: Roberto Nicolato

O CAMINHO DO MAR (André III)

"Mercedes se aproximou devagar, com gesto suave jogou os longos cabelos para trás e o beijou.  Os lábios carnudos foram acompanhando o desenho do seu corpo e ela se aninhou entre as suas pernas. Sentiu a sua pele macia, as unhas afundando-lhe a carne, um corpo dentro do outro e naquela noite jurou amá-la para sempre.  Quando acordou,  a luz do sol entrava  pela sacada do quarto e ouvia-se o barulho do trânsito na avenida muito próxima. 
Pegou o caminho da praia. Era bom colocar os pés na areia branca, na água azul cristalina. Se acomodou na espreguiçadeira e pediu uma Bucaneros, aquilo sim era um vidão, far niente, uma pena estar sozinho, mas não seria por muito tempo..."

Havana me engana
Foto: Roberto Nicolato

COMPLETA SOLIDÃO (André III)

"Sem Mercedes, sentia-se literalmente isolado do mundo, num prédio velho, único habitante, num universo desconhecido, socialista e achou aquilo engraçado. Abriu as páginas do  Imoralista, de Gide. Era movido a paixão. Quanto mais próximo do prazer mais se tem um coração puro. Só ele entendia o que aquilo queria dizer. A noite  pairava silenciosa, nem um sopro de vento, apenas o leve roncar das ondas. Observou a sacada, a porta quebrada, sem trinco, permaneceria aberta. Não tardou, ouviu um estrondo, as luzes do prédio se apagaram. Estava na mais completa solidão"".

Do romance "Havana me engana"
Foto: Roberto Nicolato

terça-feira, 12 de março de 2019

A BUSCA CONTINUA (André III)

"Pararam num mirante para observar a paisagem; Caridad e Mirela pediram uma pina colada. Dançaram ao som de um mambo que animava os turistas e André lembrou da falta dos outdoors na estrada: “aqui os publicitários estariam desempregados”, achou engraçado; as meninas vieram ter com ele. Tentaram arrastá-lo para a dança, rebolando na sua cara. Era só uma curtição... até que chegaram em Guanabo. 
Assim que o veículo estacionou, Mirela e Caridad saltaram correndo para a praia. Um partida de baseibol projetava-se num grande telão; na areia os jovens dançavam freneticamente. Corpos requebravam, todos queriam se divertir, namorar, fazer sexo. Compraram mais cervejas, André não sabia se beijava Caridad ou Mirela, até que se deu conta de que José havia falado que conhecia em Guanabo uma mulher de nome Mercedes".

Do romance Havana me engana
Foto: Roberto Nicolato

OFÍCIO, SONHO E OBSTINAÇÃO (Leon III)

"O táxi estacionou numa rua pouco movimentada, guardada por soldados. Ao longe um homem velho, de barba, de uniforme Adidas, caminhava com seguranças ao lado. Não tinha mais o sorriso e alegria dos tempos revolucionários. Caminhava encurvado como por ofício, fizera tudo por ofício, sonho e obstinação. Erros e acertos. A vida toda dedicada a um ideal, custasse o que custasse, o herói abatido pelo curso da vida, incólume ao inimigo, seria preciso se sacrificar para manter viva uma chama, e era justamente o que aquele homem pensava. Nem todos estiveram dispostos a acompanhá-lo na empreitada. E assim girava a máquina do mundo, essa máquina social azeitada e, para Leon, a felicidade lhe pareceu novamente como uma simples questão de referências".  

Do romance "Havana me engana"
Foto: Roberto Nicolato

domingo, 24 de fevereiro de 2019

E O CHE LHE SORRIU (Leon III)

"Leon observava os turistas, os quais jamais deixariam a ilha sem posar para a tradicional foto, tendo a enorme figura de Che Guevara estampada ao fundo, em estrutura de ferro, em toda a fachada de um prédio público. Quis chegar mais perto, o guarda diz que não era pra se aproximar demais, pois ali era uma área de segurança. Ele mesmo, Leon, também fez pose. “Elias venha um pouco mais pra cá com a máquina, pra que saia na foto ‘Hasta la vitória siempre’” e Che pareceu lhe sorrir, tendo embaixo um guarda carrancudo e impassível, já acostumado ao que há décadas se passava em frente ao local."

Foto: Roberto Nicolato

NO MEMORIAL JOSE MARTÌ (Leon III)






"Algum tempo depois, o táxi deixou os dois amigos na extensa Praça da Revolução e Elias convidou Leon para visitar o Memorial José Martí, poeta e herói da independência cubana. Lá dentro, estava sendo contada, numa exposição de cartazes, as conquistas dos socialismo nos 50 anos da revolução, comemorada naquele ano de 2009. Os amplos salões surgiam na arquitetura moderna e nas fotos via-se a Praça da Revolução tomada pelos cubanos no dia da vitória, o passo a passo da revolução, as poesias e a luta de José Martí, ainda no século XIX. E depois o quetzcoal, numa versão empalhada. Que pássaro lindo! O que estaria fazendo ali?"

Fotos: Roberto Nicolato

sexta-feira, 22 de fevereiro de 2019

DE HERÓIS E SIMULACROS (Leon III)

"Leon observou o simulacro de Che e pensou: O que seria do destino da humanidade sem a figura do herói? De Ulisses, aos cavaleiros da Idade Média, dos capitães navegantes dos mares, dos heróis da queda da Bastilha, de Alexandre, o Grande... Che e Fidel foram heróis da revolução socialista, libertou Cuba do regime colonialista de Fulgêncio Batista, Martin Luter King, na libertação dos negros nos Estados Unidos; Cristo foi crucificado e no Brasil, o herói maior, Tiradentes, teve seu corpo esquartejado e exibido pelas ruas da então Vila Rica, onde sua voz ressoa aos menos avisados nas noites da cidade de Ouro Preto."

A ESPERA DO PESCADOR (Giuliano III)

"Um vento a sudeste soprava tranquilo. Depois de percorrer alguns quilômetros, mar a dentro, o velho lançou âncora e sentou-se perto de Giuliano. Uma nuvem de mergulhões cortou o céu em disparada. Num instante, viu que era o Papa quem comandava a pescaria, a corda do molinete lançada ao mar, esperava, e ali, à sua frente, observou um homem em camisa de brim e bermuda caqui, repletas de bolsos, agora numa luta surda contra um marlin exasperado. Era bonito de ver. “Venha pros meus braços”, ele dizia, puxava e esticava a cordoalha..."

Foto: Roberto Nicolato

quinta-feira, 21 de fevereiro de 2019

NA TRILHA DE HEMINGWAY (Giuliano III)




"Que tal uma paella, a preferida de Hemingway? – convidou o garçon e apontou, vejam naquela parede estão fotos do único encontro com o comandante Fidel, em 1959. “O comandante venceu o concurso de pesca aqui, em Cojimar, e o troféu foi entregue por Hemingway; e ali a mesa onde sentavam-se o escritor, Gregorio Fuentes e Marta Gellhorn”, mostrou, enquanto as janelas do casarão abriam-se para um retrato nítido e fragmentado da baía".

Fotos: Roberto Nicolato

DA ARTE DE ANDAR PELA CIDADE (Giuliano III)


"Giuliano gostava de caminhar sem rumo. Anotou no moleskine: “A cidade permite muitas leituras, é preciso ler os códigos da cidade, decifrá-los, aprender a arte de andar por suas ruas, onde o caminhante tanto pode se perder quanto se achar. Mas antes de tudo, a cidade deve ser entendida como o espaço humano, da convivência. A verdade é o seu instante”. Lembrou que sempre esteve à procura de algo fugaz; se alcançasse, logo o temor de voltar pra casa de mãos vazias."

Foto: Roberto Nicolato

quarta-feira, 20 de fevereiro de 2019

CAMINHANDO PELA OBISPO (Giuliano III)


"Era uma manhã de sol, o calçadão da Obispo fervilhava, com o intenso trânsito de pedestres, o comércio não tão clandestino assim de charutos, venda de comidas de rua, bebidas coloridas, artesanais, bugingagas e lojas onde se emparedavam jovens com celulares tendo ao fundo as marcas Adidas e Via Uno. Era inacreditável: formavam pequenas células capitalistas de consumo, fora ainda do alcance financeiro da grande maioria dos nativos da ilha... Eram, sim, ícones, pequenas recordações do mundo do capital para instantes de deleite dos turistas. Um registro para a sua inseparável Canon".

Do livro "Havana me engana"
Fotos: Roberto Nicolato

sexta-feira, 8 de fevereiro de 2019

HAVANA ME ENGANA (André)

"André também se despediu dos amigos e foi em busca de sua Mercedes entre os frequentadores do Dos Gardenias. Vagou bêbado entre as mulheres, os corpos marcados por colants se exibindo... Esbarrou com uma morena, era Mercedes, enfim estava ali, bem perto, e ele a levou para um hotel no Vedado. “Dança pra mim?”, pediu. Uma fresta de luz se enfiou pela janela, incidindo sobre o corpo sinuoso, convidativo, e André percebeu o olhar feroz, dominador de fêmea no cio, ela veio por cima, sexo voraz, e ele era um animal dócil, deixando-se levar pelos seus encantos, violência e docura... “Veio me buscar”, não cansava de repetir a morena, cobrindo André de beijos."

De  "Havana me engana"

O IDEAL DO BELO (André)

"-- Ele é um exímio guitarrista, contou Leon e todos olharam para André, que mantinha-se completamente alheio, e o que Giuliano sentia por aquele cara ao lado não era atração sexual mas algo simbólico, como representação ideal do belo, pois a ele não cabia afirmar ou negar o seu querer, vivia na contemplação, como se a vida fosse um completo estágio de arte. No fundo, estava acostumado a sempre vivenciar um amor platônico e era o que bastava. Melhor, sempre tinha em mente, se apaziguar no que era possível antes de incorrer em sofrimentos fatais".

De "Havana me engana"

terça-feira, 5 de fevereiro de 2019

NAS RUAS, SEM DIREÇÃO (André)


"Já era noite quando André e os dois jovens deixaram o restaurante. Pegaram a San Lázaro, às escuras, vultos caminhavam sem direção, André nunca havia se visto num universo tão distante do seu. “Você vai na frente, certa distância da gente. Vamos pegar um taxi”, instruiu Juan e os dois jovens se separaram de André, que caminhou sem muita segurança no breu, pelas ruas sujas, esburacadas, até que o táxi parou ao seu lado e ele entrou no banco traseiro de um Chevrolet anos 50, se acomodando ao lado de Juan. Miguel ia na frente com o motorista.

-- Pra onde estamos indo? – quis saber
-- Você vai ver, é uma surpresa – respondeu Juan."

De "Havana me engana"

Foto: Roberto Nicolato