A isto se chama destino: estar em face do mundo, eternamente em face (Rilke)

quinta-feira, 26 de junho de 2014

METAMORFOSE



A metamorfose é um processo
De mudança do ser para o não ser,
Do ontem para o amanhã,
Do nada para o agora
Travestido de novo.

A metamorfose ocorre
Durante a passagem
Dos raios luminosos,
De um vago pensamento,
De lapsos, vôos incertos.

O corpo se transforma.
Os músculos, novos, exaltam
E a conformação corpórea
Rompe o mundo antigo
Crisálida que se aflora,
Prateada de cor
A quem se olha...
Não é propriamente
Um descaminho
Essa procura que não se acha
Esse novo de eterna maravilha
Esse ganho de perdas.

A metamorfose é uma
Meta(mor), fóssil cheio
De cores, feições e jeitos
Uma nova forma prevista,
Que surpreende por ser nova,
Única e indiferenciada.

A metamorfose da
Borboleta-coruja,
Lepitoptera, foi
Observada
Pelos botânicos em
Todo o país ou quase.
O camaleão que refestela
Ao sol dos trópicos ou
A visão do acaso numa noite
De lua  é pura metamorfose.

Ela está suspensa no vento,
No galho de manacá roxo
Na folha da roseira.
Não há sol no azul que a
Surpreenda, essa forma de vida
Que se entrega ao mundo
Para seguir o que se determina,
E que ela em formas  refaz.

(Poema e foto de Roberto Nicolato)

O JARDIM JAPONÊS



Pedras disformes se chocam.
Seixos. De musgos, se alimentam.

Brincam entre cubos, pirâmides,
os círculos de fogo...

Árvores, gêmeas, germinam
entre boninas e lírios brancos.

A água goteja em planos descendentes!

Longe se ouve a aranha tramando...
O espinafrar de asas, incertas.

Frágil é o jardim para o desavisado pássaro.
Ele invade territórios, o ninho das orquídeas.

Cerejeiras estão em flor!
É primavera no coração de Bashô!

O sapo salta fora d’água
Torvelinhos se formam...
O rio se enche de “barrigudinhos”.

A água escorre, o rio-tanque, estanque
O pequeno Buda brinca de esconde-esconde.
aos olhos de quem o oriente:

No jardim de formas sinuosas
De desenhos geométricos,
tímidas bromélias 
brincam entre bonsais.

Nele a natureza faz festa:
Bate o tambor:
acorda a floresta,
ao som do taikô!

(Poema de Roberto Nicolato - Obra "Jardim Japonês", de Claude Monet)

domingo, 22 de junho de 2014

FALANDO EM FUTEBOL, COPA E INGENUIDADES II



-- Você conhece as catacumbas? – perguntou Joãozinho ao amigo, com o qual dividia o quarto no seminário.
-- Não. Não tenho coragem – respondeu Alfredinho com franqueza, para que não restassem dúvidas de que ele jamais pretendia colocar os pés naquele lugar.
Desde que chegara ao seminário, havia dois anos, não tinha sequer ousado chegar perto da entrada e muito menos descer a escada que dava acesso ao úmido e escuro porão (assim imaginava), onde os mortos estariam repousando na paz de Deus. Achava muito estranho eles estarem ali muito próximos dos vivos.
  Não foram poucas as vezes em que acordou de noite em pesadelo, cumprindo uma caminhada por aqueles caminhos tortuosos. As urnas trancadas e o que se encontrava lá dentro? Assim, mantinha o quanto podia o mais afastado das catacumbas, de maneira que a pergunta feita por Joãozinho o pegou de calças na mão. Ele sabia que o amigo a fazia só pra provocar, pra mostrar coragem e se revelar capaz de descer aquelas escadas, se é que já não tivesse visitado algum dia os mortos.
Sabia que lá encontravam-se os corpos dos irmãos fundadores da ordem, e que no seminário a cada qual destacavam-se uma maneira de ser, prevalecendo as suas melhores atribuições, pois que ali o trabalho de dedicação era indispensável.   Ele conhecia todos pelas fotografias no livro de recordações. Tentava pela formato e expressão de cada um, dar-lhe o caráter necessário, o sentimento devido para com os alunos da instituição. E ali estavam eles, em preto e branco, nos dias de festas e homenagens, nas formaturas e despedidas, com uma postura solene, na maior das vezes.
Joãozinho, no entanto, insistiu.
-- Pensava que não tinha medo de nada…
--  Prefiro não conversar sobre o assunto – escamoteou Alfredinho, para que o amigo o deixasse em paz.
Na manhã seguinte, os meninos acordaram bem cedo como de praxe. No entanto, era domingo no seminário. Depois das orações, teriam o dia inteiro livre para fazer o que quisessem.  A maioria gostava de jogar futebol pela manhã ou ensaiar alguns movimentos de luta.  Não teriam os padres pra os espionar, de modo que a liberdade era algo que os deixava em completo estado de euforia.
  O campinho ficava próximo ao Cruzeiro, de onde se avistava o imenso rosto esculpido em pedra da montanha. Carregado de mistério, a cara enorme formada há milhões de anos, olhava para o céu. Para Alfredinho, representava algo indecifrável da mesma forma que os dogmas religiosos que entre os padres pareciam tão naturais. Se durante o dia, a caraça reinava absoluta como se estivesse dormindo num leito eterno, à noite o que assustava o adolescente eram os gemidos dos lobos na imensa floresta. Podia ouvi-los defronte à janela do quarto.
Nos jogos como nas brigas, Joãozinho sempre tinha ascendência sobre os demais meninos do seminário. O adolescente era magro, alto, moreno e de uma inteligência superior aos demais. Alfredinho o admirava, ao mesmo tempo em que  o achava esnobe, cônscio demais de sua superioridade.  O campinho, naquela manhã estava lotado, os times foram divididos, de modo que ele acabou permanecendo entre os onze jogadores,  cuja equipe adversária tinha Joãozinho na liderança.
Joãozinho continuou decidido na sua ideia de levar o amigo a conhecer as catacumbas. Houve uma aposta e o combinado foi que o time perdedor teria de encararar uma visita aos subterrâneos do Seminário, onde dormiam eternamente, como já dito, os membros da congregação. Alfredinho, desta vez, não teve outra alternativa a não ser aceitar a aposta, pois que o pior de tudo era a covardia. E temia ser vítima de chacotas Assombrava-se, no entanto, ao pensar em percorrer os labirintos estreitos e escuros que levavam aos mortos.
Ssria um jogo de vida e morte, pois ninguém queria correr o risco de enfrentar tal situação.  Se o time adversário contava com Joãozinho, como esperança de gols, a equipe de Alfredinho depositava em Josué a sua maior força.  Embora não muito inteligente nas aulas, o adolescente tinha vocação para jogar futebol. Era ágil, forte e sabia usar as oportunidades para marcar os gols.
O primeiro tempo terminou em 1 a 0 para o time adversário.  No segundo, o empate com um gol de Josué, mas foi por pouco tempo, pois a destreza de Joãozinho conseguiu superar a marca adversária. Perdiam por 2 x 1 e restavam poucos minutos para terminar a partida. No semblante dos colegas, estava estampada uma mistura de desânimo e assombro.
Que ele se lembrava nunca tinha sido um bom jogador de futebol. E por isso, Alfredinho sempre atuou na defesa, pois que não se sentia capaz de inventar jogadas e, assim, se safava da cobrança de ter que marcar algum gol. Mas naqueles minutos finais, precisava fazer algo, por ele mesmo. Foi então que correu para a pequena área do time adversário e num passe de mágica não é que a bola veio diretamente aos seus pés! Foi só finalizar um chute certeiro e evitar uma derrota vergonhosa. O time estava salvo e ele, com sua equipe, não teria mais que pagar a aposta. Pela primeira vez, se sentiu-se um vencedor. Foi cercado, abraçado  pelos colegas.
Joãozinho ainda tentou conversar. Dizer que o juiz tinha roubado… Alfredinho olhou para o amigo, notou a  revolta, e o melhor de tudo era que não precisaria enfrentar mais aquela situação absurda, pois que os fantasmas haviam sido  derrotados. Dali em diante, refugiariam-se para sempre nos túmulos de sua memória.
E foi assim que Alfredinho não precisou mais provar ao amigo qualquer espécie de coragem para visitar as catacumbas, no porão do seminário. No outro dia, os meninos mais  aliviados com a decisão dos irmãos superiores: O portão que levava aos corredores escuros, localizados nos subterrâneos debaixo dos quartos onde dormiam, estaria para sempre trancado à visitação pública.
(Trecho do livro "A caminhada ou O homem sem passado, de Roberto Nicolato - Obra "Futebol", de Cândido Portinari)