A isto se chama destino: estar em face do mundo, eternamente em face (Rilke)

terça-feira, 27 de maio de 2014

FALANDO EM FUTEBOL, COPA E INGENUIDADES

                                Obra "Futebol", de Cândido Portinari

                                            
                                                       Guerra de Torcidas


Próximo ao rio ficava o campo de futebol. Naquele domingo pela manhã, o time da casa iria receber um visitante de peso. A pequena torcida era composta principalmente por moças e crianças. Ele, um moleque franzino, de calças curtas, se juntou ao bando e se foram a desfilar pela grama, lateral ao campo, de uniformes e bandeiras, acompanhados por uma pequena charanga, a tocar e a sinalizar nas letras de músicas conhecidas os mais desaforos em relação à torcida rival.
No meio da pequena multidão, um rosto se destacava. Era Marcela, já na adolescência, com seu rosto provocativo, marcado por sardas e os olhos verdes que mais lembrava Babi, uma gatinha arisca que vivia no povoado.
Marcela empunhava a bandeira verde e branca do Independente Futebol Clube, o suor escorria pela blusa amarrada na cintura por um nó, e os seios durinhos a lhe provocar, assim como as pernas torneadas que se moviam com vigor por debaixo da minissaia.
-- Vamo pra cima deles! Dizia com ferocidade, apanhando em todo o espaço em que havia muchibas de laranja para assustar a torcida adversária. Precisavam saber que eram do mato e eles da cidade e, por isso eram, por sorte do destino, mais animais e, portanto, mais fortes.
A guerra de muchibas e de palavrões foi declarada. O que lhe movia era algo instintivo e não quis saber naquele momento em quem estava do lado de lá, a não ser o inimigo. Como nos soldadinhos de chumbo.  No campo, o jogo também esquentava. José Adauto jogava muito pelas pontas, Danilo tinha um chute forte e certeiro e Antônio Carlos era o melhor do time, pois que driblava com astúcia e sabedoria.
Tinham até uma trilha sonora para embalar a torcida. Coisa pra irritar, mesmo. Quando do primeiro gol do time da casa, a euforia tomou conta de todos, assim como as provocações, o que irritou ainda mais a torcida adversária.  E não sem hora, a confusão engrossou, com palavrões, e foi quando Marcela, que avançava na frente como uma guerreira,  recebeu na cabeça uma pedrada.
A menina não percebeu de imediato, até que o sangue verteu quente pelo rosto, entre os cabelos e a boca. Sentiu-se fora da luta e foi então que todos começaram a dar conta de que se tratava mais do que uma inocente briga de torcidas.
Marcela foi resgatada do chão por vários braços, carregada num ritmo veloz, que foi abrindo caminho na multidão até ser instalada dentro de um jeep. Ele olhou seu rosto  ensanguentado e não se esqueceu jamais daqueles olhos verdes e febris. Dali,  ela foi levada ao hospital da cidade mais próxima.
Voltou para casa no mesmo dia, ainda mais bonita, com o curativo na cabeça, sinal de luta e heroísmo. Estava feliz e isso ele pôde ver nos seus verdes olhos. O Independente sofreu muito, lhe disseram, mas venceu com garra e talento um time de peso da segunda divisão.
(Extraído do livro "A caminhada ou O homem sem passado", de Roberto Nicolato)