A isto se chama destino: estar em face do mundo, eternamente em face (Rilke)

sexta-feira, 27 de abril de 2018

JORNALISMO E LITERATURA

Considerações sobre estilo e representação da realidade
 Roberto Nicolato 
             Os recursos estilísticos utilizados pelos gêneros literários e jornalísticos se diferem e ao mesmo tempo se aproximam, embora a atividade jornalística tenha considerado como intrínseca à sua própria característica o estilo direto, a concisão, clareza e precisão. Mas é preciso se ater aos estudos do Gênero, no interior do próprio discurso jornalístico, para entender que esse é um parâmetro para determinar a clareza, a transparência da linguagem, pois o máximo que o jornalismo pode chegar é até as notas do estilo realista da literatura, de Balzac a Dickens e Flaubert.
            Ou seja, a natureza da atividade prática e a função no qual está inserido o jornalismo, coloca a linguagem a serviço principalmente da comunicação e com o espírito da ética na relação com o leitor.
De outro modo, o estilo literário prima pela indefinição, ambigüidade e pela representação indireta da realidade. Mas no contexto da pluralidade dos modos de criação literária, o caráter documental e objetivo – que tem definido a linguagem jornalística desde o início do século XX -- também pode constituir o principal arcabouço na construção dos romances e novelas em diferentes fases da literatura.
              Como exemplo, citamos as experiências com o realismo social de Balzac, Dickens e Flaubert, na Europa; a escrita de Lima Barreto, em estilo jornalístico, e considerada “desleixada” por muitos críticos; sem falar nos romances regionalistas de cunho extremante objetivo como Vidas secas, de Graciliano Ramos, e boa parte da literatura dos anos 70, fase marcada por uma fecunda aproximação da literatura ao jornalismo.
             Ou seja, a literatura pode incorporar o estilo comum à história e ao jornalismo, no que consiste especificar o caráter de verdade da ficção, conforme assevera Peter Gay:

A ficção pode, sem dúvida, oferecer a veracidade dos detalhes; os romancistas e poetas não são estranhos à pesquisa. Balzac, em Les ilusions perdues [as ilusões perdidas], conta aos leitores talvez mais do que estes se interessassem em saber sobre as atividades gráficas; Melville acumula informações técnicas exaustivas sobre as baleias e a caça a elas em Moby Dick; Thomas Mann discorre com um prazer indisfarçado sobre as causas e o tratamento da tuberculose em Zauberberg [A montanha mágica]. Tais fatos, em si, são reportagens; retirados do contexto ficcional em que ocupam sua função, seriam textos jornalísticos, especializados ou mesmo históricos (GAY, 1990, p.172).


            Quanto ao jornalismo, o estilo marcado pela objetividade, clareza e concisão, predominante desde o início do século XX, segue a velocidade das práticas rotineiras e tende a apresentar margens de diferenças de um discurso da Internet, para o de um jornal ou de uma revista. Mas todos, no entanto, têm algo que os assemelham: uma padronização notória e homogênea que se situa em menor ou maior grau, mas que os define, principalmente neste momento em que há um distanciamento maior em relação aos procedimentos literários.
             Para o leitor, não se trata de uma tarefa difícil diferenciar, na atualidade, a enunciação jornalística da literária, visto que o jornalismo criou um discurso autônomo, e predominantemente marcado pela objetividade, muito embora ainda prevaleçam em alguns textos os procedimentos assemelhados ao de uso corrente do new journalism. Ou seja, em contrapeso, o jornalismo tem utilizado em diferentes fases o discurso indireto e plurívoco dos procedimentos literários.
            Na questão do estilo, da mesma forma que objetividade aproxima-se da notícia, a subjetividade muitas vezes pode acompanhar o discurso como o zumbido de uma mosca na grande reportagem, numa revista ou livro. A notícia, pela sua própria natureza, vai carecer de um tipo de linguagem mais próxima da realidade objetiva, para dar conta do objeto que precisa ser descrito no seu imediatismo e na intenção de propor a verdade. Trata-se, desta forma, da opção por um discurso que cumpre uma função moral, ética, de caráter anunciador do fato, mesmo que este traga em si diferentes lados, algumas facetas nas quais são projetados fachos de luz para torná-las mais visíveis.
            A subjetividade, por sua vez, tende a ganhar espaço e valor na medida em que o fato se amplia, ganha dimensão sociológica, intelectual e simbólica numa grande reportagem na qual não se pode desprezar as figuras de retórica e os diferentes pontos de vistas no sentido de contar uma história. No fundo, os estilos praticados por ambos os gêneros mais os unem do que os distanciam, sendo que na literatura, por ser guiada principalmente pelo ficcional e pelo imaginativo, há uma maior pluralidade de experiências e experimentações.
            Em suma, é preciso ressaltar que a maneira como cada gênero representa a realidade irá refletir na linguagem e no estilo adotado pelo enunciador, predominantemente de forma mais direta e comunicativa no caso do jornalismo, ou indireta no tocante à literatura. Neste sentido, vale lembrar que a ruptura provocada pelas vanguardas no início do século XX trará aos olhos do leitor uma realidade muitas vezes distorcida e fragmentada.
            Se na questão do estilo e representação da realidade, pode-se dizer que há certa diferenciação – mas que em alguns momentos da história se aproximam por demais pelo próprio empréstimo de um gênero ao outro –, distanciamento maior ocorre em relação às funções que cada um dos gêneros exerce quando da representação de uma determinada realidade. Enfim, no caso específico do jornalismo, a comunicação com o leitor e a busca da verdade através do pacto ético. “Num texto de 1927, A natureza da experiência estética, George Herbert Mead salientava que o jornalismo tinha várias funções, uma delas a de dar espaço ao imaginário, outra a de procurar notícias, necessária a uma sociedade aquisitiva. Entre as duas, a margem é estreita e a dimensão de informação inseparável da componente estética, aqui definida numa dimensão social” (PONTE, 2004, p.53).
            Esta discussão levanta outras questões: a primeira se dá no nível da linguagem, ou seja, é certo que no jornalismo impera a função pragmática, mas nada o exime de dialogar com a função estética, o que é comprovado principalmente nas grandes reportagens e nas crônicas, consideradas um gênero híbrido entre o jornalismo e literatura.  Por outro lado, a literatura, que por sinal é reconhecida pela função estética, ou pela linguagem no mais alto grau de significados possíveis, como diria Pound, pode também exercer uma função pragmática, e um exemplo é a produção literária durante o regime militar no Brasil pós-64 que, em função da censura, manteve um diálogo intenso com a linguagem e os procedimentos jornalísticos.
            A discussão invariavelmente encaminha-se para questões de fundo moral e filosófico que, de certa forma, estão relacionadas à natureza intrínseca e afirmativa dos dois gêneros e às tentativas de situarem-se em campos autônomos. Enquanto o jornalismo passará, ao longo da história, a ser regido cada vez mais pelo pacto ético com o leitor, pela busca da veracidade dos fatos, a literatura deixará de, obrigatoriamente, estabelecer compromissos com as funções de caráter moralizante, conforme já mencionado, para avançar pelo domínio plural e indefinido da natureza estética, a partir do que se convencionou chamar de “arte pela arte” dos simbolistas e parnasianos do século XIX até culminar com as transformações operadas pelos movimentos de vanguardas no início do século XX.
            Isto, entretanto, não impediu que o campo plural da literatura continuasse a abrigar uma visada de caráter ético que, se não estava condicionada ao encontro da verdade de caráter imediato do jornalismo, resultará num esforço de constituir uma prosa direcionada ao modo solidário do processo ficcional para com as classes oprimidas, contrário à violência, às injustiças sociais e a qualquer possibilidade de restrição da liberdade do indivíduo num determinado contexto sócio-cultural.
            No livro Que é literatura, o filósofo e escritor Jean-Paul Sartre defende, inclusive, a tese de que, por essência, a literatura deva desencadear ações para o desvendamento da realidade, de modo que o escritor sempre necessitará promover escolhas e que jamais poderá portar-se na condição de “inocente” diante do mundo.  “(...) acreditamos que o escritor deve engajar-se inteiramente nas suas obras, e não como uma passividade abjeta, colocando em primeiro plano os seus vícios, as suas desventuras e as suas fraquezas, mas sim como uma escolha, com esse total empenho em viver que constitui cada um de nós (...) (SARTRE, 2006, p. 29).
            Conforme observa o autor, a literatura só se realiza quando compreende a possibilidade da liberdade de escolha.  Este posicionamento, inclusive, é evidenciado nas obras de ficção produzidas por Sartre em total consonância com o seu pensamento filosófico, expresso na liberdade compromissada com outro, presente, por exemplo, na trilogia “Os caminhos da liberdade”, composta pel’ A Idade da razão, Sursis e Com a morte na alma.

Não se escreve para escravos. A arte da prosa é solidária com o único regime onde a prosa conserva um sentido: a democracia. Quando uma é ameaçada, a outra também. E não basta defendê-las com a pena. Chega um dia em que a pena é obrigada a deter-se, e então é preciso que o escritor pegue em armas. Assim, qualquer que seja o caminho que você tenha seguido para chegar a ela, quaisquer que sejam as opiniões que tenha professado, a literatura o lança na batalha; escrever é uma certa maneira de desejar a liberdade; tendo começado, de bom grado ou à força você estará engajado (p. 53).

Por certo que o posicionamento do escritor e filósofo francês, de defesa do engajamento quando da produção literária, deva ser entendido dentro do contexto histórico-social no qual o autor estava inserido, marcado pela resistência francesa durante a Segunda Guerra Mundial; e também pelo fato de a obra Que é literatura constituir-se numa resposta de Sartre a Julien Benda, defensor do não-engajamento do escritor em seu livro La trahison des clercs. No fundo, a recusa de Sartre representa uma forma de combater aqueles para quem o escritor não pode, de maneira alguma, estar comprometido com o seu tempo histórico, mas somente com o exercício da arte pela arte.
É evidente que a tese de Sartre se apresenta nos dias atuais de forma datada, tendo em vista a libertação da literatura de uma conduta, diria exemplar. Por outro lado, a historiografia literária brasileira vem demonstrando que este gênero acabou sendo acionado em momentos que ao jornalismo foi negado o exercício de sua função ética, libertadora e democrática, de compromisso com os interesses de grande parte da sociedade.  Um exemplo foi o caminho trilhado pelos escritores, a maioria jornalistas, na década de 70, na busca de retratar a realidade social e política do país, apagada pelo mando da censura. Ou então, o engajamento de Lima Barreto, na luta pelo fim da discriminação e divisão racial e de classe no país no raiar da República.
No mais, não se sabe até quando efetivamente o jornalismo e a literatura permanecerão como tentativas de se estabelecerem como gêneros autônomos, uma vez que vivem historicamente numa relação de simbiose, necessária para dar conta de revelar as relações de poder exercidas a partir dos mecanismos de intervenção e representação da realidade. 
            Se levarmos em consideração as idéias de Eagleton, as distinções de gêneros, fruto da sociedade burguesa, quem sabe um dia poderão se mostrar falaciosas, no contexto de uma sociedade que prima pela pluralidade de meios de compreensão da atividade artística e do diálogo entre os diferentes tipos de artes, neste início do século XXI.
            O jornalismo absorveu o discurso da ciência, do ideal “burguês”, da modernidade.  Era necessário, no âmbito do espírito do direito à informação que predominava no final do século XIX, que este adotasse uma linguagem objetiva e que carecesse de um método, de um conjunto de regras para que estas pudessem ser utilizadas por todos. Era necessário uma aproximação da verdade objetiva para o relato, pelo menos num primeiro momento, no calor dos fatos.
            Na contemporaneidade, estas práticas continuam a ser adotadas, a servir como guia nas atividades jornalísticas, embora não invalidem as experiências estéticas realizadas nas grandes reportagens, artigos e ensaios.  Talvez algum dia a literatura traga novamente o jornalismo para o campo literário, como primo-irmão do romance, do conto e da poesia.  Uma tese, porém, considerada distante, tendo em vista o fato de o jornalismo ter alcançado maior proeminência, como porta-voz do cidadão nas ditas sociedades democráticas.
No mais, é preciso considerar o fato de o jornalismo ter deixado de representar mera figura de retórica, após o poder de influência que passaria a conquistar no século XIX, e com o império que em torno dele se formou, no século XX, a partir do surgimento das grandes redes de comunicação, transformando-se no principal agente na configuração da esfera pública na sociedade moderna.  E por fim, vale lembrar que tem crescido a produção de estudos teóricos que buscam oferecer-lhe um atestado epistemológico, como um campo autônomo.
            Desta forma, a natureza dos princípios do jornalismo e da literatura mostra-se distinta. E não é possível pensar mais no ideal de pura aproximação como havia há pelo menos um século. Da literatura agrada ao jornalismo a linguagem, embora não é raro observar, nas últimas décadas, uma redução da dimensão estética, dos procedimentos literários, nas reportagens publicadas nos veículos de comunicação, principalmente no Brasil. O interessante, no entanto, é saber até que ponto a prevalência deste discurso objetivo e científico, que lhe contribui para atestar o seu caráter de autonomia, prevalecerá nos jornais impressos, tendo em vista que os meios eletrônicos e digitais captam a informação no seu imediatismo e, nisso, o discurso da objetividade, da pirâmide invertida, já vem exercendo uma função primordial.
            Ao jornalismo impresso, quem sabe restará novamente a busca de uma aproximação maior com a literatura, por meio de um discurso diferenciado capaz de seduzir aquele que lê, com outras armas que a própria divulgação da notícia, que a comunicação imediata com o leitor.








Invenção










A cor da água
flui vaga, rosa,
(mente) pelas ruas,
vindo soturna:
cor(ação).

A mola do mundo,
solta no caos.
Imprecisas retinas.

O corpo na cerca,
estendido no fio
de arame:
holo(caos)to.

Violetas,
violas
invento:

Um peixe anarquista no aquário!
     (Foto: Raquel Santana)