A isto se chama destino: estar em face do mundo, eternamente em face (Rilke)

sexta-feira, 22 de março de 2019

A ESSêNCIA DO TRÁGICO (Giuliano IV)




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"Giuliano puxou uma das cadeiras, sentou, encostou o rosto na mesa e sonhou o mesmo sonho, recorrente, daqueles que um dia desertaram de sua terra, os chamados homens condenados ao desterro, e Hemingway era um deles,  queria sim classificá-lo, ele que era um homem de poucas lidas, recolhido à sua mansarda, o designava como um macho sedutor, um homem de duas faces, num tempo em que só eram concebidas a perfeição e o desregramento; ele era a própria essência do trágico, Apolo e Dionísio. No fundo, um herói de si mesmo, um homem qualquer. Ou como gostaria Anna..."

Do livro "Havana me engana"
Fotos: Roberto Nicolato

quarta-feira, 20 de março de 2019

NA RESIDÊNCIA DE HEMINGWAY (Giuliano IV)








"Anna desceu do Chevy Bel Air e naquela tarde trajava um vestido florido, tinha belas pernas, notou Giuliano, e ela lhe sorriu, tomando-lhe os braços para que pudessem entrar juntos na casa do escritor. As entradas, no entanto, encontravam-se bloqueadas. A regra era observar tudo das amplas janelas do agora museu, administrado pelo governo cubano. Anna enfiou a cabeça para dentro da casa. “Aquele foi o maior que ele matou”, indicou a funcionária, orgulhosa. A garota perseguiu com os olhos nas paredes brancas os troféus de caça: um grande cabeça de bisão empalhada, e depois  os cervos, animais do Quênia.  

-- Que horror! – disparou."

Do romance "Havana me engana"
Fotos: Roberto Nicolato

quinta-feira, 14 de março de 2019

NA FLORIDITA (Giuliano IV)

"A moça roçou carinhosamente o rosto na estátua de Hemingway, ele sentado no balcão na pose de bebedor inveterado, e ela em pé num abraço, pedindo para que a fotografassem. Um daiquiri, por favor, diziam os turistas que iam tomando conta do grande balcão, ávidos por provarem o drinque celebrado pelo escritor.  Uma pequena orquestra animava o ambiente e os garçons moviam-se frenéticos naquele ritual de todos os dias. Estavam ali reunidos grupos de turistas que não se conheciam, mas que pareciam muito próximos como se participassem de uma confraria, embora sem contágio e profunda interação. 
Ah! A Floridita é aqui. Giuliano entrou de mansinho, vergonhoso, pois que estava só."

Do romance Havana me engana
Foto: Roberto Nicolato

O CAMINHO DO MAR (André III)

"Mercedes se aproximou devagar, com gesto suave jogou os longos cabelos para trás e o beijou.  Os lábios carnudos foram acompanhando o desenho do seu corpo e ela se aninhou entre as suas pernas. Sentiu a sua pele macia, as unhas afundando-lhe a carne, um corpo dentro do outro e naquela noite jurou amá-la para sempre.  Quando acordou,  a luz do sol entrava  pela sacada do quarto e ouvia-se o barulho do trânsito na avenida muito próxima. 
Pegou o caminho da praia. Era bom colocar os pés na areia branca, na água azul cristalina. Se acomodou na espreguiçadeira e pediu uma Bucaneros, aquilo sim era um vidão, far niente, uma pena estar sozinho, mas não seria por muito tempo..."

Havana me engana
Foto: Roberto Nicolato

COMPLETA SOLIDÃO (André III)

"Sem Mercedes, sentia-se literalmente isolado do mundo, num prédio velho, único habitante, num universo desconhecido, socialista e achou aquilo engraçado. Abriu as páginas do  Imoralista, de Gide. Era movido a paixão. Quanto mais próximo do prazer mais se tem um coração puro. Só ele entendia o que aquilo queria dizer. A noite  pairava silenciosa, nem um sopro de vento, apenas o leve roncar das ondas. Observou a sacada, a porta quebrada, sem trinco, permaneceria aberta. Não tardou, ouviu um estrondo, as luzes do prédio se apagaram. Estava na mais completa solidão"".

Do romance "Havana me engana"
Foto: Roberto Nicolato

terça-feira, 12 de março de 2019

A BUSCA CONTINUA (André III)

"Pararam num mirante para observar a paisagem; Caridad e Mirela pediram uma pina colada. Dançaram ao som de um mambo que animava os turistas e André lembrou da falta dos outdoors na estrada: “aqui os publicitários estariam desempregados”, achou engraçado; as meninas vieram ter com ele. Tentaram arrastá-lo para a dança, rebolando na sua cara. Era só uma curtição... até que chegaram em Guanabo. 
Assim que o veículo estacionou, Mirela e Caridad saltaram correndo para a praia. Um partida de baseibol projetava-se num grande telão; na areia os jovens dançavam freneticamente. Corpos requebravam, todos queriam se divertir, namorar, fazer sexo. Compraram mais cervejas, André não sabia se beijava Caridad ou Mirela, até que se deu conta de que José havia falado que conhecia em Guanabo uma mulher de nome Mercedes".

Do romance Havana me engana
Foto: Roberto Nicolato

OFÍCIO, SONHO E OBSTINAÇÃO (Leon III)

"O táxi estacionou numa rua pouco movimentada, guardada por soldados. Ao longe um homem velho, de barba, de uniforme Adidas, caminhava com seguranças ao lado. Não tinha mais o sorriso e alegria dos tempos revolucionários. Caminhava encurvado como por ofício, fizera tudo por ofício, sonho e obstinação. Erros e acertos. A vida toda dedicada a um ideal, custasse o que custasse, o herói abatido pelo curso da vida, incólume ao inimigo, seria preciso se sacrificar para manter viva uma chama, e era justamente o que aquele homem pensava. Nem todos estiveram dispostos a acompanhá-lo na empreitada. E assim girava a máquina do mundo, essa máquina social azeitada e, para Leon, a felicidade lhe pareceu novamente como uma simples questão de referências".  

Do romance "Havana me engana"
Foto: Roberto Nicolato