Suzy
Roberto Nicolato
Suzy deixou a caixa de papelão num canto do passeio,
caminhou lentamente, esperou, um carro zuniu em disparada, olhou para os dois
lados da rua e, cambaleante das pernas, tentou a travessia. Parte dos pelos
havia caído, as manchas escuras abriam-se em feridas, as orelhinhas murchas.
Estava acostumada a transpor a rua larga e movimentada. Mas agora era diferente.
O outro lado parecia mais distante, quase indefinido. Sentia o respirar
ofegante e a vista tomada pela catarata.
Velha já
ficara e cheia de doenças. Ninguém a olhar por ela, sempre tendo que vencer
sozinha na vida. Mais um carro passou como um raio, outros vieram em seguida,
ainda bem que Suzy ouvia direito e, assim, pôde esperar o momento certo para
atravessar. Vislumbrava do outro lado algo apetitoso, colorido e com cheiro
bom. Tinha que atravessar para pegar a comida, antes que outro cão a farejasse.
Com esforço, Suzy levantou uma das orelhas murchas, o
rabo alongou-se e foi decidida, confiante; esboçou um zigue-zague atrapalhado,
um automóvel freou em cima, deu um gemido, apenas um susto, e, com esforço e
sorte, conseguiu atingir o outro lado da rua; em pouco tempo carregava,
tentando esconder entre os dentes, o merecido objeto de desejo.
O velho a observava da janela de seu apartamento.
Vivia solitário. Julgou-se igual a ela. Acompanhava o drama de Suzy e sabia
que ela não se contentava em permanecer em apenas uma das margens. Ainda mais
que o mundo era vasto, vastíssimo, sem paredes.
Testemunhou as fases da vida de Suzy, desde que ela
nascera; um filhote muito vivo, a saltitar pela grama,. Os dentes fininhos mordiam
em tudo. Ninguém quis adotá-la. Assim foi criada na rua. Com as sobras. Só água
à vontade. Além de um abrigo improvisado, feito com caixa de papelão, e o velho
cobertor na calçada para se defender do frio. Suzy, no fundo, sabia se virar,
pois que a ela foi dada a inteligência dos vira-latas.
O velho
agora a observá-la debaixo da marquise, deitada, lambendo as feridas. O tempo havia
passado rápido demais. A cadela chegara aos quinze, ele de tudo lembrara, ainda
mais agora, quando os dias se resumiam aos cômodos do apartamento, com o pijama
de sempre, sem uma companheira que fosse para cobrir-lhe as pernas no frio, dar
os remédios na hora certa, fazer o café.
Tinha casado sim. Tivera por muito tempo uma vida
normal. Diria feliz. Até que a esposa caiu doente e foi primeiro. Não esperava.
Os filhos já haviam saído de casa, cada um morando numa cidade diferente e ele
preferiu ficar ali, se dizendo forte, dono do seu próprio nariz porque não
queria viver na dependência de ninguém. Enfim, as visitas eram bem vindas no
período das férias.
Vivia o tempo todo trancado dentro de casa e ainda bem
que podia pagar a empregada. De tal maneira que lhe sobrava muito tempo para se
assuntar do nada, para observar o movimento da rua, as mudanças de estação e o
ser vivente que com ele comungava. Suzi atravessando o asfalto a desviar dos
carros, de sem-vergonhice com os cachorros do bairro, pedindo comida aos
transeuntes, acompanhando um rapaz até o ponto de ônibus, atrás dos
passarinhos.
Notou, no entanto, que ultimamente Suzy andava sem rumo,
o rabo entre as pernas, fazendo um esforço danado para não permanecer no mesmo
lugar. Do mesmo modo, ele também sem ter para onde ir, confinado com um boi a
espera do desfecho final, sentindo frio nos ossos, as pernas doídas pelo
reumatismo.
Melhor se a cadela morresse logo, do que viver naquela
agonia, condoeu-se o velho ao avistar Suzy, do outro lado da rua, agora
tremendo de frio, encolhendo-se toda no seu mundo de dor. Sentiu piedade. Lembrou
de tomar os remédios. Escolheu uma das caixinha, dentro de uma caixa maior. E
enfiou na boca três comprimidos. Tudo rápido demais, sem qualquer pensar.
A tarde caiu, o nevoeiro tomou conta de tudo. O velho
voltou à janela, de frente pra rua. Suzy apareceu, como uma mancha escura, não
se via mais a caixa de papelão e, aos poucos, foi-lhe sumindo da vista. Na rua,
tomada pela cerração, reinava a luz dos faróis, impressionistas, dos postes de
iluminação pública. Pensou: ela
deve estar no mesmo lugar, desvalida, pedindo socorro. Não esboçou qualquer
reação, pois que era tarde para enfrentar o frio cortante lá fora. No fundo, achou que fosse melhor
assim. A empregada já tinha se
despedido e não tardou pra que ele
pegasse no sono.
Num só instante, Suzy corria desvairada pelo
apartamento; dona de tudo subia nos móveis da sala, lambia-lhe os braços,
afoita. Com o fôlego de atleta, as
mãos ágeis, ele afagou a cabeça, as orelhinhas marrons.
Olhou pela janela, uma estrela desceu em disparada. Duas pequenas esferas
brilharam. E sonhou com caçadas na mata, brincadeiras na praia, Suzy agora
feliz, o pelo sedoso contra o vento.