Um cara que sabe pouco de si
Às folhas tantas de A
caminhada ou O homem sem passado, o narrador da história – cuja identidade
custa a sair de dentro do bolo – avisa "não saber quem é". Conta isso
com a maior pinta de desmemoriado, só que não. Pois é. Informação dada,
impossível não roer as unhas e pedir trégua para tomar um ar. Dá nos nervos.
Então é esse o pacto? – um protagonista que não podemos ter na palma da mão. Um
baque.
Mas a canelada do autor
faz um bem danado. O narrador nos priva do consolo das certezas, não sabe quem
é, mas tampouco nós sabemos quem somos. Machuca um bocado ter de admitir isso,
em especial para aqueles que já acumulam uns cabelos brancos nas têmporas, dor
nas costas ocasionais e se acham na obrigação de arrotar alguma sabedoria.
Tudo fingimento. A vida
é uma fantasia que a gente inventa, disse outro dia o poeta Ferreira Gullar.
“De verdade” mesmo, só as joanetes. Somos ilustres estranhos e os anos vividos
só fazem confirmar que somos uma tentativa frustrada de projeto positivista. Um
mistério. E é para essa zona escura que Roberto Nicolato nos carrega, fazendo
uso de uma das mais fascinantes formas de literatura – o romance de viagem. Ele
nos oferece um passaporte – mas um passaporte para se perder, como no melhor
das ficções de E.M. Forster e Paul Bowles.
Confesso que estranhei
encontrar personagem tão etéreo – e entendo que a estranheza estava programada,
feito taxa de luz que cai na conta corrente. Mas não estranhei que o autor
Roberto Nicolato tenha criado alguém assim, ao vento. Para Nico, como é chamado
pelos mais próximos, a tríade erotismo, exotismo, esoterismo é pura
racionalidade. O extraordinário faz para ele o maior sentido. Quando viaja –
nas palavras ou pelas estradas – nunca visita bocejantes cartões-postais.
Antes, abre portas secretas, lê inscrições obtusas, puxa papo com seres
chapados – essas figuras de Goya que passeiam pelas paisagens sem que prestemos
atenção.
Nico jura que seu
escrito não é autobiográfico, mas há tanto dele impresso em cada capítulo que
já penso em convidá-lo em ser meu guia pela Bolívia – terreno da maior parte da
trama. O problema vai ser voltar para casa impunemente. Impossível não passear
por essas linhas sem deixar algum pedaço da gente enterrado nas margens do
Titicaca.
“À guisa” de
apresentação, o tal do protagonista é um homem atordoado pelas lembranças que
lhe fogem. Segue pelo interior do Brasil, até chegar à Bolívia. Lá, embrenha-se
pela mítica Tiahuanaco, um desses endereços da cultura Pré-Colombiana que, por
pura preguiça, insistimos em ignorar. No caminho encontra figuras insólitas,
cuja veracidade têm o status dos discos voadores. Não sabemos se são os deuses
astronautas, holografias, partes de um sonho provocados por uma feijoada pesada
demais. Tem-se a impressão de que lá pelas tantas o narrador vai acorda e se
espreguiçar, comprar pão e revelar que caímos numa pegadinha.
Não é o que acontece,
garanto. Roberto Nicolato está aqui não para enredar, mas para esgarçar o
sentido da palavra viagem. Teve trabalho: cruza abismos da ficção e da
imaginação, às vezes na pontinha dos pés. Nos mete medo. Por tabela, nos dá
prazer. Não poderia fazer diferentes nesses anos do estranhíssimo século 21. Ao
tratar de uma viagem, não teria como fazê-lo com tintas leves. Nem como nos
levar a um lugar óbvio. Antes, a vertigem.
Nosso viajante não quer
a Velha Europa e seus castelos, ou algum resort. Quer a Atlântida perdida. Quer
o Centro da Terra. Quer ir a 1,5 mil anos antes de Cristo com uma passagem
barata. Não procura a viagem tola do sexo casual, mas vai às últimas instâncias
do afeto como ilusão, com folga o mais emocionante e o mais praticado. Tira de
um roçar de mãos o big-bang. Mais. Não faz do inconsciente um conceito para o
qual estamos adestrados, mas a maior e a mais perigosa das odisseias.
Com perdão ao uso de uma
ideia amarelada à exaustão, como diria o formalista russo Victor Shklovsky – a
vida é sonho, sem nata, sem valsa. Se não assumirmos essa contingência da
natureza humana, não há milhagem que nos tire do lugar. Os sonhos nos ensinam
que os personagens mais incríveis são aqueles que se impõem, sem que saibamos
de onde vieram. Mostram que perdemos o passado a cada minuto, mas que vivemos
às voltas com ele, atrás da chave que nos trará de volta ao ponto. Quanto aos
fantasmas, quem não os vê? Viajamos atrás deles para conseguir voltar para
casa. É disso que nos fala Nico e seu incrível narrador, um cara que por sorte
sabe pouco de si.
José Carlos Fernandes é jornalista e
professor universitário
(Fonte Tombomachay, no Peru - Foto: Roberto Nicolato)
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