A isto se chama destino: estar em face do mundo, eternamente em face (Rilke)

quarta-feira, 2 de outubro de 2013

Prefácio do livro "A caminhada ou O homem sem passado"







                               Um cara que sabe pouco de si




Às folhas tantas de A caminhada ou O homem sem passado, o narrador da história – cuja identidade custa a sair de dentro do bolo – avisa "não saber quem é". Conta isso com a maior pinta de desmemoriado, só que não. Pois é. Informação dada, impossível não roer as unhas e pedir trégua para tomar um ar. Dá nos nervos. Então é esse o pacto? – um protagonista que não podemos ter na palma da mão. Um baque.
Mas a canelada do autor faz um bem danado. O narrador nos priva do consolo das certezas, não sabe quem é, mas tampouco nós sabemos quem somos. Machuca um bocado ter de admitir isso, em especial para aqueles que já acumulam uns cabelos brancos nas têmporas, dor nas costas ocasionais e se acham na obrigação de arrotar alguma sabedoria.
Tudo fingimento. A vida é uma fantasia que a gente inventa, disse outro dia o poeta Ferreira Gullar. “De verdade” mesmo, só as joanetes. Somos ilustres estranhos e os anos vividos só fazem confirmar que somos uma tentativa frustrada de projeto positivista. Um mistério. E é para essa zona escura que Roberto Nicolato nos carrega, fazendo uso de uma das mais fascinantes formas de literatura – o romance de viagem. Ele nos oferece um passaporte – mas um passaporte para se perder, como no melhor das ficções de E.M. Forster e Paul Bowles.
Confesso que estranhei encontrar personagem tão etéreo – e entendo que a estranheza estava programada, feito taxa de luz que cai na conta corrente. Mas não estranhei que o autor Roberto Nicolato tenha criado alguém assim, ao vento. Para Nico, como é chamado pelos mais próximos, a tríade erotismo, exotismo, esoterismo é pura racionalidade. O extraordinário faz para ele o maior sentido. Quando viaja – nas palavras ou pelas estradas – nunca visita bocejantes cartões-postais. Antes, abre portas secretas, lê inscrições obtusas, puxa papo com seres chapados – essas figuras de Goya que passeiam pelas paisagens sem que prestemos atenção.
Nico jura que seu escrito não é autobiográfico, mas há tanto dele impresso em cada capítulo que já penso em convidá-lo em ser meu guia pela Bolívia – terreno da maior parte da trama. O problema vai ser voltar para casa impunemente. Impossível não passear por essas linhas sem deixar algum pedaço da gente enterrado nas margens do Titicaca.
“À guisa” de apresentação, o tal do protagonista é um homem atordoado pelas lembranças que lhe fogem. Segue pelo interior do Brasil, até chegar à Bolívia. Lá, embrenha-se pela mítica Tiahuanaco, um desses endereços da cultura Pré-Colombiana que, por pura preguiça, insistimos em ignorar. No caminho encontra figuras insólitas, cuja veracidade têm o status dos discos voadores. Não sabemos se são os deuses astronautas, holografias, partes de um sonho provocados por uma feijoada pesada demais. Tem-se a impressão de que lá pelas tantas o narrador vai acorda e se espreguiçar, comprar pão e revelar que caímos numa pegadinha.
Não é o que acontece, garanto. Roberto Nicolato está aqui não para enredar, mas para esgarçar o sentido da palavra viagem. Teve trabalho: cruza abismos da ficção e da imaginação, às vezes na pontinha dos pés. Nos mete medo. Por tabela, nos dá prazer. Não poderia fazer diferentes nesses anos do estranhíssimo século 21. Ao tratar de uma viagem, não teria como fazê-lo com tintas leves. Nem como nos levar a um lugar óbvio. Antes, a vertigem.
Nosso viajante não quer a Velha Europa e seus castelos, ou algum resort. Quer a Atlântida perdida. Quer o Centro da Terra. Quer ir a 1,5 mil anos antes de Cristo com uma passagem barata. Não procura a viagem tola do sexo casual, mas vai às últimas instâncias do afeto como ilusão, com folga o mais emocionante e o mais praticado. Tira de um roçar de mãos o big-bang. Mais. Não faz do inconsciente um conceito para o qual estamos adestrados, mas a maior e a mais perigosa das odisseias.
Com perdão ao uso de uma ideia amarelada à exaustão, como diria o formalista russo Victor Shklovsky – a vida é sonho, sem nata, sem valsa. Se não assumirmos essa contingência da natureza humana, não há milhagem que nos tire do lugar. Os sonhos nos ensinam que os personagens mais incríveis são aqueles que se impõem, sem que saibamos de onde vieram. Mostram que perdemos o passado a cada minuto, mas que vivemos às voltas com ele, atrás da chave que nos trará de volta ao ponto. Quanto aos fantasmas, quem não os vê? Viajamos atrás deles para conseguir voltar para casa. É disso que nos fala Nico e seu incrível narrador, um cara que por sorte sabe pouco de si.

José Carlos Fernandes é jornalista e professor universitário
(Fonte Tombomachay, no Peru - Foto: Roberto Nicolato)


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