-- Você
conhece as catacumbas? – perguntou Joãozinho ao amigo, com o qual dividia o
quarto no seminário.
-- Não.
Não tenho coragem – respondeu Alfredinho com franqueza, para que não restassem
dúvidas de que ele jamais pretendia colocar os pés naquele lugar.
Desde que
chegara ao seminário, havia dois anos, não tinha sequer ousado chegar perto da
entrada e muito menos descer a escada que dava acesso ao úmido e escuro porão
(assim imaginava), onde os mortos estariam repousando na paz de Deus. Achava
muito estranho eles estarem ali muito próximos dos vivos.
Não
foram poucas as vezes em que acordou de noite em pesadelo, cumprindo uma
caminhada por aqueles caminhos tortuosos. As urnas trancadas e o que se
encontrava lá dentro? Assim, mantinha o quanto podia o mais afastado das
catacumbas, de maneira que a pergunta feita por Joãozinho o pegou de calças na
mão. Ele sabia que o amigo a fazia só pra provocar, pra mostrar coragem e se
revelar capaz de descer aquelas escadas, se é que já não tivesse visitado algum
dia os mortos.
Sabia que
lá encontravam-se os corpos dos irmãos fundadores da ordem, e que no seminário
a cada qual destacavam-se uma maneira de ser, prevalecendo as suas melhores
atribuições, pois que ali o trabalho de dedicação era indispensável. Ele conhecia todos pelas
fotografias no livro de recordações. Tentava pela formato e expressão de cada
um, dar-lhe o caráter necessário, o sentimento devido para com os alunos da
instituição. E ali estavam eles, em preto e branco, nos dias de festas e
homenagens, nas formaturas e despedidas, com uma postura solene, na maior das
vezes.
Joãozinho,
no entanto, insistiu.
--
Pensava que não tinha medo de nada…
-- Prefiro não conversar sobre o assunto –
escamoteou Alfredinho, para que o amigo o deixasse em paz.
Na manhã seguinte, os meninos acordaram bem cedo como de praxe. No
entanto, era domingo no seminário. Depois das orações, teriam o dia inteiro
livre para fazer o que quisessem.
A maioria gostava de jogar futebol pela manhã ou ensaiar alguns movimentos
de luta. Não teriam os padres pra os
espionar, de modo que a liberdade era algo que os deixava em completo estado de
euforia.
O
campinho ficava próximo ao Cruzeiro, de onde se avistava o imenso rosto
esculpido em pedra da montanha. Carregado de mistério, a cara enorme formada há
milhões de anos, olhava para o céu. Para Alfredinho, representava algo
indecifrável da mesma forma que os dogmas religiosos que entre os padres
pareciam tão naturais. Se durante o dia, a caraça reinava absoluta como se
estivesse dormindo num leito eterno, à noite o que assustava o adolescente eram
os gemidos dos lobos na imensa floresta. Podia ouvi-los defronte à janela do
quarto.
Nos jogos
como nas brigas, Joãozinho sempre tinha ascendência sobre os demais meninos do
seminário. O adolescente era magro, alto, moreno e de uma inteligência superior
aos demais. Alfredinho o admirava, ao mesmo tempo em que o achava esnobe, cônscio demais de sua
superioridade. O campinho, naquela
manhã estava lotado, os times foram divididos, de modo que ele acabou permanecendo
entre os onze jogadores, cuja
equipe adversária tinha Joãozinho na liderança.
Joãozinho continuou decidido na sua ideia de levar o amigo a conhecer as
catacumbas. Houve uma aposta e o combinado foi que o time perdedor teria de
encararar uma visita aos subterrâneos do Seminário, onde dormiam eternamente, como
já dito, os membros da congregação. Alfredinho, desta vez, não teve outra
alternativa a não ser aceitar a aposta, pois que o pior de tudo era a covardia.
E temia ser vítima de chacotas Assombrava-se, no entanto, ao pensar em percorrer
os labirintos estreitos e escuros que levavam aos mortos.
Ssria um jogo de vida e morte,
pois ninguém queria correr o risco de enfrentar tal situação. Se o time adversário contava com Joãozinho,
como esperança de gols, a equipe de Alfredinho depositava em Josué a sua maior
força. Embora não muito
inteligente nas aulas, o adolescente tinha vocação para jogar futebol. Era
ágil, forte e sabia usar as oportunidades para marcar os gols.
O primeiro tempo terminou em 1 a 0
para o time adversário. No
segundo, o empate com um gol de Josué, mas foi por pouco tempo, pois a destreza
de Joãozinho conseguiu superar a marca adversária. Perdiam por 2 x 1 e restavam
poucos minutos para terminar a partida. No semblante dos colegas, estava
estampada uma mistura de desânimo e assombro.
Que ele se lembrava nunca tinha
sido um bom jogador de futebol. E por isso, Alfredinho sempre atuou na defesa,
pois que não se sentia capaz de inventar jogadas e, assim, se safava da
cobrança de ter que marcar algum gol. Mas naqueles minutos finais, precisava
fazer algo, por ele mesmo. Foi então que correu para a pequena área do time
adversário e num passe de mágica não é que a bola veio diretamente aos seus pés!
Foi só finalizar um chute certeiro e evitar uma derrota vergonhosa. O time
estava salvo e ele, com sua equipe, não teria mais que pagar a aposta. Pela
primeira vez, se sentiu-se um vencedor. Foi cercado, abraçado pelos colegas.
Joãozinho ainda tentou conversar. Dizer que o juiz tinha roubado…
Alfredinho olhou para o amigo, notou a
revolta, e o melhor de tudo era que não precisaria enfrentar mais aquela
situação absurda, pois que os fantasmas haviam sido derrotados. Dali em diante, refugiariam-se para sempre nos
túmulos de sua memória.
E foi assim que Alfredinho não precisou mais provar ao amigo qualquer
espécie de coragem para visitar as catacumbas, no porão do seminário. No outro
dia, os meninos mais aliviados com
a decisão dos irmãos superiores: O portão que levava aos corredores escuros,
localizados nos subterrâneos debaixo dos quartos onde dormiam, estaria para
sempre trancado à visitação pública.
(Trecho do livro "A caminhada ou O homem sem passado, de Roberto Nicolato - Obra "Futebol", de Cândido Portinari)
(Trecho do livro "A caminhada ou O homem sem passado, de Roberto Nicolato - Obra "Futebol", de Cândido Portinari)
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