Roberto Nicolato
A cidade permite muitas
leituras. Tem uma escrita muito própria e, como diria os semiólogos, é composta
de significantes e significados. No emaranhado de signos que sinalizam suas
ruas, praças e avenidas, o caminhante tanto pode se perder quanto se achar.
Mas, antes de tudo, a metrópole deve ser entendida como o espaço humano, da
convivência.
Assim, é preciso saber ler
os códigos da cidade, decifrá-los, aprender a arte de andar pelas ruas, como
diria o cronista carioca João do Rio, que deixou o espaço confortável da
redação do jornal para penetrar na alma do Rio de Janeiro. Dos mangues aos
morros, do reduto burguês ao universo do proletariado, nada escapou à
curiosidade e ao olhar do cronista.
O andar apressado deve dar
lugar a caminhada tranquila, observadora. Grandes verdades podem se ocultar no
que é episódico e circunstancial. O escritor Rubem Braga extraía lirismo e
poesia de um simples flagrante na esquina, que pode muito bem retratar a alma
de uma coletividade.
Na arte de andar pelas ruas,
a máxima do cronista é um ensinamento: "A verdade não é o tempo que passa,
a verdade é o instante". Instantes
que fazem parte da existência humana, que nos acompanham e que não damos conta.
A cidade também é o espaço
onde presente e passado se fundem. Escavar os labirintos da memória é buscar a
identidade da cidade. Neste aspecto, uma metrópole como Curitiba é muito mais
do que nos salta à vista, num primeiro instante. Muito mais do que as invenções
urbanísticas que dominam a cena.
Quem aqui chega pela
primeira vez pode ter a sensação de que a cidade tem uma breve certidão de nascimento,
tal é a modernidade. Mas Curitiba esconde outros mistérios, histórias e tantos
outros projetos arquitetônicos e urbanísticos. A melhor maneira de penetrar
neste universo, na outra Curitiba, é ler os livros do escritor Dalton Trevisan.
Assim, é possível ver a
cidade invisível, penetrar na cidade que ultrapassa o discurso oficial. Mas
quem pretende seguir os rastros dessa memória, andando ou flanando, o primeiro
passo deve ser dado em direção à Casa que leva o nome de Romário Martins, a
única que restou do período colonial na cidade. Ou então começar pela leitura de Em busca de Curitiba perdida, do
contista paranaense.
Espaço
de contemplações
Mas de nada adianta as intervenções
urbanas se o convívio social permanece rompido. Charles
Baudelaire, o poeta da modernidade, utiliza uma metáfora no poema "O
Cisne" que bem caracteriza o processo de modernização da velha Paris em
meados do século 19 e faz pensar nas transformações urbanas que as cidades
passaram no século 20: "(...) de uma
cidade a história/Depressa muda mais que um coração infiel".
Para o
filósofo Walter Benjamin, um dos grandes estudiosos da obra de Baudelaire,
"a cidade de Paris ingressou no século 20 sob a forma que lhe foi dada
Haussmann. Ele realizou sua transformação da imagem da cidade com meios mais
modestos que se possa pensar: pás, enxadas, alavancas e coisas semelhantes”. O
prefeito Georges Eugène Haussmann começou as obras em 1859. Derrubou
bairros inteiros em nome do progresso e da modernidade.
O
pensamento de Baudelaire sobre esse novo tempo, na verdade, abriga muitas contradições. Não é à toa,
que Marshal Bermann, em Tudo o que É
Sólido Desmancha no Ar, afirme que na obra do poeta simbolista francês há
visões distintas de modernidade, que muitas vezes estão em oposição. Ou seja, as celebrações líricas da vida
moderna em determinado momento se contrapõem às veementes denúncias contra a
modernidade.
Se por um lado, a multidão – o
cortejo heroico dos dândis, flauners, apaches, lésbicas,
trapeiros, proletários, prostitutas, que são as alegorias da modernidade – instaura como o grande
personagem de Baudelaire, por outro, poeta vai lançar um certo desdém sobre a
ideia de progresso, sobre o pensamento e a vida moderna, como está escrito em
seu ensaio “Sobre a Moderna Idéia de Progresso Aplicada às Belas Artes” (1855).
Os
poemas em prosa de Baudelaire, contidos em Spleen de Paris, assim
como os "Tableaux de Paris", de Flores do Mal, por
exemplo, colocam o poeta como um dos grandes escritores urbanos. “Os olhos dos pobres” (1864) e “A Perda do Halo”, contidos no Spleen de Paris, foram escritos no
período em que Haussmann, sob o comando de Napoleão III, remodelou a cidade de
Paris, implantando uma vasta rede de bulevares no coração da velha cidade
medieval e novas vias para circulação do tráfego.
Segundo Berman, com o novo planejamento urbano, Paris se tornaria uma festa para os olhos
e os sentidos. Mas as transformações que “haviam tirado os pobres do alcance da
visão, agora os trazem de volta diretamente à vista de cada
um”.
Com a
modernidade, o olhar antes circunscrito aos valores eternos e imutáveis se
volta para o efêmero. E como um grande visionário, Baudelaire já acenava
em "O Cisne", para a perda da medida (geográfica e social) das
cidades, embora nem tanto para a dimensão a que alcançou no decorrer do século
20.
Outra leitura obrigatória, desta
vez para entender "poeticamente" e penetrar no fantástico universo da
urbanidade dos tempos mais remotos aos atuais, é o livro Cidades Invisíveis, de Ítalo Calvino. No diálogo entre Marco Polo e Khubai Klan, o
espaço é revelado a partir da memória, dos símbolos, para no decorrer das
narrativas atingir o caos, a perda da medida, ou seja, a cidade sem fim,
envolta em problemas de toda a ordem.
O tema é apaixonante e a
literatura, que versa sobre o assunto, é vasta e plural, contemplando todas as
áreas do conhecimento. Em Cidades
Estreitamente Vigiadas: O Detetive e o Urbanista (Editora Casa da Palavra),
Robert Moses estuda a formação da ordem urbana no Rio de Janeiro, onde esses
profissionais se inserem, revelando como se organizou o convívio dos habitantes
e se deu as reformas urbanísticas.
Para isso, o autor voltou ao século
19, quando o Rio era uma cidade em pleno crescimento, com uma população
misturada de negros, escravos, burgueses, analfabetos e imigrantes. Para moldar
a cidade como um espaço de convivência, era preciso enquadrar esses habitantes
diversos na idéia de civilidade.
Desta forma o detetive e o
urbanista são chamados para devolver a ordem à cidade. Mas após suas passagens,
diz o autor, "não resta mais nada, nem labirinto, nem multidão e nem mesmo
a cidade, que se transforma num espaço abstrato, sem densidade histórica".
Assim, a cidade passa a ser apenas
ponto de passagem para o automóvel, a se constituir num espaço fragmentado. E
intervenções urbanas parecem não dar conta de que antes de modificar a paisagem
é preciso estabelecer a rede de sociabilidades, o convívio humano que foi
rompido. Senão, os espaços se tornam meros lugares de passagem e contemplação.
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