A isto se chama destino: estar em face do mundo, eternamente em face (Rilke)

sexta-feira, 22 de janeiro de 2016

NO CALOR DO SANGUE DE IRENE NÉMIROVSKY

Eu encontrei a obra de Irène Némirovsky, Calor do Sangue, meio que por acaso, sem qualquer indicação de jornalista, escritor ou amigo. Estava na Rodoviária do Rio quando deparei com um quiosque de livros ( daqueles também instalados em shoppings de Curitiba), tudo a R$10,00 cada, e pensei: no meio de tantos será que não acharia um que fosse do meu agrado?Na verdade, o que eu pretendia era um título chamativo, com poucas palavras e múltiplos significados, envolvente; um projeto gráfico bem cuidado e uma história bem contada. Por apenas R$ 10,00.

 

Quem tem o hábito de ler romances e, lógico, conhece um pouco do mercado nacional, acredito, sabe reconhecê-los. Digo, acredito. Assim gastei R$ 20,00 por dois livros e deixei para trás Rita, Ritinha, Ritona, de Dalton Trevisan, também ao custo de R$ 10,00, não pelo autor, de quem muito admiro, apenas porque não era a literatura apropriada para um trabalhador a caminho de alguns dias de férias em Arraial do Cabo, no Rio de Janeiro.

 

Eu queria mesmo era ler bons romances. E sempre penso nisso quando encontro preciosidades em pequenas feiras. Literatura de qualidade e em promoção. Aí reside a glória... Mas se arrependimento matasse... Dalton, então, que me perdoe.  Nessa vida não é apenas o dinheiro que conta. Ainda falta Rita, Ritinha, Ritona e muitos outros livros desse meu autor predileto para fechar a coleção. Acho que ainda tenho muitos anos de minha vida para comprá-los. Eu acredito.

 

Foi com o ônibus na estrada que encontrei novamente Irène Némirovsky, essa escritora de  origem judia ucraniana, morta aos 39 anos de idade, numa câmera de gás, em Auschwitz, pelo regime nazista; não sem antes  protagonizar uma carreira literária de sucesso, embora a experiência vivida como refugiada, ela e sua família, no interior da França, tenha sido preponderante no êxodo alcançado com sua obra mais prestigiada e transformada em filme: Suíte Francesa.

 

Mas o que eu tinha em mãos era um exemplar de Calor do Sangue, cujo enredo e estrutura tradicional do romance me chamou mais atenção do que o livro Carlota Faiberg, do escritor espanhol, Antonimo Muñoz  Molina, pra mim também desconhecido. Achei que, de outro modo, a obra de Irène combinava mais com o clima "férias de verão", que a discussão proposta por Molina, conforme a orelha do livro( minha única referência até agora), de que não se deve levar ao extremo  as proposições dos Estudos Culturais que tendem a nivelar a baixa e alta cultura... Só lendo pra saber...

 

O fato é que Calor do Sangue me acompanhou em boa parte da viagem e nos dias de temporada no litoral do Rio. E o mais interessante é que pude perceber que o livro dessa escritora, de origem judia, embora tendo sido escrito há muitos anos e apresentando um cenário diferente do meu universo, vejo-o com alguns pontos de correlação (e bastante significativos), com meu segundo romance, Do outro lado da rua. Pra ser mais prosaico, coisa mesmo de sincronia!

 

É lógico que meu livro traz algumas características que diferem da obra de Irène, uma vez que procuro misturar a forma tradicional do romance com uma estrutura temporal mais afeita às técnicas da literatura contemporânea. No mais, sou um escritor iniciante e não me julgo em condições de me comparar aos grandes nomes da literatura. Mas fiquei feliz por compreender que no meu romance há algo do livro de Irène, muito embora me fosse totalmente desconhecida. E estava lá, no ritmo da linguagem, no modo de caracterizar a psicologia das personagens e no enquadramento da voz do narrador para descrever as relações afetivas entre moradores no interior da França. E de como a autora expõe, com agudez e maestria, o  universo das convenções, da hipocrisia e de infidelidades! Afinal, seus personagens como os meus, em Do outro lado da rua,  se dobram ao calor das  paixões.

 

Enfim, é mais gratificante compreender por si próprio a alma da linguagem e a natureza das personagens  do que ser guiado, embora o poder da criação seja fruto do acúmulo de leituras. Descobrir essa semelhança -- mesmo que entre alguns aspectos nas duas obras -- me proporcionou um sentimento verdadeiro e autêntico. E mais:  o livro dessa autora só me faz confirmar  de que já dobrei a primeira curva e que agora é preciso atravessar pontes, rios e seguir uma extensa e apaixonante caminhada.


 

 

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